E cá vamos andando, nesta democracia sem qualidade.
Porventura com a memória do Dia de Trabalho para a Nação, decretado por Vasco Gonçalves, estabeleceu o primeiro-ministro dois dias de mobilização nacional para a causa da floresta, convidando cidadãos, deputados e partidos a juntarem-se nas ações de limpeza. Seis minutos e 47 segundos foi a contribuição direta do primeiro-ministro para a defesa da floresta. Mais do que isso levou certamente a vestir a armadura para a sua defesa pessoal: botas resistentes, proteção para as pernas, óculos e viseira, protetor dos ouvidos, casaco e capacete garbosamente amarelos. Uma alegoria perfeita: devidamente couraçado, seis minutos de roçadora na mão e ala, moço, que se faz tarde, é preciso ir ver roçar a outra banda, mas inculcada ficou a ideia de que o seu trabalho ficou feito e de que a responsabilidade que resta é toda dos proprietários. E os ministros sapadores, não do mato mas do microfone, ampliaram a mensagem.
A mensagem do primeiro-ministro estaria certa se ao fogo real que matou mais de uma centena de portugueses tivesse respondido o governo com legislação entendível e medidas praticáveis, em vez de um fogo-fátuo de propaganda de ações mal-amanhadas que deixam o cidadão e pequeno proprietário do minifúndio desprotegido e cada vez mais confuso. Claro que o ilustrado cidadão urbano, a leste dessas pindéricas e provincianas questões, é o primeiro a aplaudir a ação decidida do governo. E a votar em conformidade.
Uma lei que é “exemplo de leis mal feitas, sem base técnica ou científica”, no dizer da comissão independente. Uma lei tosca imposta para ser executada em dois ou três meses, depois prolongados, sem cuidar, em qualquer caso, da inexistência de meios humanos e técnicos disponíveis para cumprir tais datas.
Uma lei de tão largo espetro e sujeita a tantas interpretações que já levou a dizimar áreas sem tento nem senso, ao corte de árvores de fruto, à dúvida sobre abater ou preservar árvores protegidas.
À devastação dos incêndios pode suceder uma nova devastação, agora burocrática, devida à obrigatoriedade de distância entre a copa das árvores, que chega aos dez metros, um absurdo que facilita a radiação solar e a correspondente produção adicional de matos e matéria combustível, obrigando a mais intervenções, todavia impossíveis de executar por falta de meios financeiros. Sem esquecer o prejuízo resultante dos cortes, a que acresce o temor de multas pesadas.
Perante o dever de limpar a mata, o proprietário procura saber o que fazer. Fala com a junta, que diz que é tudo uma asneira, mas que tem de cumprir para não ter problemas; com a câmara, mais política, que diz que vá cortando e depois logo se vê; com os sapadores contratados e as empresas florestais, que não querem responsabilidades e fazem o que o dono entender. E fala com a GNR, que se limita a repetir a lei. E, perante respostas tão diversas, o cidadão fica inquieto e confuso e sem saber, por mero exemplo, se os medronheiros são árvores de fruto a preservar ou arbustos que crescem na mata e não podem ultrapassar os 50 cm de altura, ou se tem de podar as giestas e as ervas com mais de um palmo. E se o fizer, fica sem saber onde vão pastar as cabras, agora apresentadas como uma das soluções para os incêndios.
E se o prazo foi ampliado, nem por isso a GNR deixa de levantar autos. De mero aviso?
Não é assim? Vão então falar com as populações do centro do país e das Beiras!…
Urgente teria sido a instalação de parques de receção da madeira queimada ou abatida que assegurassem a sua conservação, amenizando os prejuízos dos proprietários e minimizando os danos florestais causados pelos insetos e fungos das árvores apodrecidas. Em circunstâncias mais penosas, a França fê-lo há anos, em pouquíssimo tempo, enquanto nós nem ainda um parque temos aprovado e muito menos em funcionamento.
Entretanto, e segundo as últimas estatísticas, vamos empobrecendo em relação à Europa, seis pontos percentuais entre 2010 e 2016. E nesta mesma data, o fosso entre a região mais rica do país, AMLisboa, e a região mais pobre, o Norte, era de 35 pontos percentuais. Mas isto pouco interessa, assim como nada interessa que o setor público se endividasse mais três mil milhões de euros em janeiro.
Cá vamos, pois, nesta democracia sem qualidade, mas cheia de fogo-de-vista a preceito. Ah, e o propalado défice de 0,9% com que a geringonça nos ia ludibriando passou rapidamente a 3%. Mas aqui também o governo fez o que lhe competia, a culpa é de Bruxelas…
Fogo-de-vista, fogo de lágrimas: ala, moço, que se faz tarde!…
Economista e gestor Subscritor do “Manifesto:Por Uma Democracia de Qualidade” pcardao@gmail.com por uma democracia de qualidade