Goa. Morrendo em português à sombra das palmeiras

Goa. Morrendo em português à sombra das palmeiras


Os nomes de família – herdados da conversão obrigatória aos cristianismo – permanecem, mas cada vez há menos gente a perceber português no mais pequeno Estado da Índia. 


OLVA – Tenho um grande amigo chamado Fernandes, Michael Fernandes. Ele não sabe ao certo porque se chama Fernandes. Os ingleses diriam: «It comes with the family…» Precisamente: é de família.

Michael Fernandes não tem nenhum antepassado português, mas o nome não engana. E não se recorda do primeiro dos Fernandes seus avós. Pouco importa. Hoje tem um passaporte português que lhe permite vir à Europa de quando em vez e até trabalhar em Inglaterra durante os meses das monções que o obrigam a desfazer a cabana que ergue na praia todos os anos, por finais de Setembro: o Bob’s Shack. Bob’s de Bob Marley. Em Goa toda a gente da sua geração gosta de Bob Marley. Michael Fernandes tem 44 anos. Conheço-o há vinte.

Quando conheci Michael Fernandes ele desejava muito ter um passaporte português e vir a Portugal. Mas, na altura não era fácil como agora. Foi preciso tempo, esforço e dedicação por parte do seu advogado, outro amigo, este com escritório em Lisboa mas que também vem a Colva com frequência. 

Colva fica perto de Margão, no panchayat de Salcete. Um panchayat é uma divisão administrativa. Nada mais do que isso.

Em Colva ainda se encontra uma Goa antiga, espécie de Portugal que já não há.

Praias a perder de vista, mulheres de saris e sarongs coloridos mergulhadas na água quente do mar, a noite prolongada em conversas numa varanda sem horizontes, as luzes dos barcos de pesca como estrelas caídas sobre o horizonte, os cães vadios rosnando para delimitar os territórios, o marulhar das folhas das palmeiras, dos coqueiros e dos cajueiros.

Michael Fernandes conseguiu o seu passaporte português ao fim de três, quatro anos. A verdade é que o abandono precipitado do território por parte dos portugueses e a invasão por parte das forças militares da União Indiana do pandita Nehru deixou um vazio legal que acabaria por ser aproveitado por muitos dos goeses mais novos. Nunca foi dada a hipótese de escolha aos habitantes do território nascidos sob a bandeira do Regime, como ainda por aqui lhe chamam. Passaram a integrar a Índia não obstante terem nascido em Portugal.

Michael Fernandes e o seu advogado começaram por reclamar a nacionalidade portuguesa dos pais Fernandes, nascidos bem antes do ano de 1962 que mudou a vida de Goa para sempre. Depois, depois… «it comes with the family…»

Goa é o Estado mais pequeno da Índia e tem cerca de um 1,8 milhões de habitantes em 3700 quilómetros quadrados. Ainda há muitos católicos, mas não chegam a um terço da população.

Michael Fernandes é católico.

Assisti ao seu casamento na Igreja do Menino Jesus de Colva.

Fui padrinho da sua filha, Abeni, na mesma Igreja do Menino Jesus de Colva.

Estava muita gente em ambos os católicos-apostólicos-romanos acontecimentos. Mas nem todos eram católicos, embora se benzessem.

A dimensão dos nomes

A conversão da população goesa à igreja católica levou a que muitos dos naturais do território, recém-convertidos através do baptismo muitas vezes forçado, fossem obrigados a adoptar um nome de família cristão. A grande maioria foi buscá-lo aos patrões ou aos proprietários de terras nas quais trabalhavam.

Já há muito pouca gente a falar português em Goa apesar da língua oficial do Estado, o konkani, ter uma muito razoável variedade de expressões lusitanas.

A que eles parecem preferir é «sósegaad». 

O estilo de vida goês é assim mesmo: sossegado.

Quando a lua cheia se estende sobre a imensidão da praia e do mar de Colva e um silêncio de corvos emudecidos cai sobre o areal agora arrefecido que ferveu durante a tarde, a música solta-se das cabanas de madeira erguidas na areia. 

«I’m feeling so alone that I can’t believe», canta o David Gray no roufenho aparelho de som do Boomerang Bar ao qual a gente se habituou a chamar Malibu Beach. 

Os novos tempos fizeram que o Boomerang tenha agora o seu cartaz luminoso também escrito em caracteres cirílicos.

Os russos foram chegando a Colva e ficaram.

Não há muita gente nesta noites de Março no fim.

A malta nova optou pela agitação inglesada do norte, de Baga e Calangute onde as discotecas disputam clientes embriegados com cerveja Kingfisher e uísques de má qualidade.

Goa: «Alcohol Free State!»

Uma declaração destas vale, até, o contínuo arribar de gente que vem de Bombaim (agora muito indianamente Mumbai) para passar as noites de sexta e de sábado de copo e garrafa na mão.

 A clientela do Bob’s reduz-se, para já, a aves de arribação sem poiso certo: um australiano de cabelo longo, cara marcada por cicatrizes e gestos indecisos de álcool; um inglês gordo que explica alto coisas que ninguém entende; figuras abstractas, personagens incompletos de uma história ainda por escrever. 

Sob as sombras estreladas dos coqueiros, duas silhuetas femininas repetem as curvas e contracurvas do ritmo da música vagarosa. Absorvem-se uma na outra e em si próprias. Traços negros que a lua destaca na areia esbranquiçada, movimentos em slow motion que espreitamos na certeza absoluta de que um gesto, apenas um gesto, os fará desaparecer sem retorno. 

Há na sua timidez a suave beleza das imagens escondidas. «I’m feeling so alone that I can’t believe». Os braços levantados sobre as cabeças, os saris disfarçando as curvas dos corpos, as mãos desenhando esses que o requebros das ancas repetem até aos pés. «Time after Time after Time…». 

Debaixo da lua cheia, sob a protecção dos coqueiros, duas silhuetas dançam a canção da Índia…

O Heraldo

Herald ou O Heraldo.

O cabeçalho provoca a confusão.

Foi fundado em Pangim, a capital do Estado de Goa, em 1900 por Aleixo Clemente Messias Gomes e por Luiz Menezes de Bragança.

Primeiro era escrito totalmente em língua portuguesa: daí O Heraldo. Depois passou para o inglês: daí Herald.

Olhem para a primeira página e leiam como quiserem. Qualquer opção é boa.

Nas páginas dos obituários, os nomes são irrepreensivelmente familiares. Lá está: «It comes with the family…»

Zacarias Rodrigues, Roque da Costa, Luiza Pereira d’Souza.

Muita caligrafia já em desuso.

Filomena Emilia Magdalena Fernandes, Francis Da Gama: eles gostam do d minúsculo antes do apóstrofe e do d maiúsculo a separar apelidos.

Francisco Menino Agnelo Rodrigues.

Desde que venho para Colva, há mais de vinte anos, às vezes duas, três, quatro vezes por ano, conheço Fernandes, Castros (e Crastos), Mellos, Rodrigues, Boavidas.

Os nomes que se amontoam na página dos obituários.

Nomes portugueses de gente que ainda falava um bocadinho de português.

Higina Sophie Fernandes, Gabriel Filipe d’Cunha, Bosco Pinto, Paciencia Menezes, Teodomira Fernandes.

Teodomira… Há séculos que não me lembrava de uma Teodomira. Nomes desaparecidos como Pulquéria ou Soledade.

Ainda assim, a língua portuguesa desaparece e os nomes não. Vão ficando de filhos para netos e novos filhos.

A viagem de comboio de Bombaim para Margão não se recusa. Longe vai ficando a cidade grande. Pedaços de Índia soltos pelas janelas gradeadas. Perco-me num livro e nos números que lá vêm. 

A Indian Railways é um universo impressionante. Por toda a Índia existem mais de setenta mil quilómetros de linhas de caminho de ferro. Diariamente, mais de sete mil comboios de passageiros se deslocam transportando mais de onze milhões de passageiros entre cerca de sete mil e duzentas estações. Tem a imensidão de qualquer coisa como quase dois milhões de funcionários. Distraio-me depois. 

Deixo que os olhos vão e venham do horizonte. Trago comigo a lembrança surpreendente da pontualidade destes comboios de aspecto arruinado. Em tantos e tantos milhares de quilómetros percorridos nunca sofri um atraso de mais de meia hora. Em trinta e duas horas de viagem, não se notou… 

Já passei por tantas estações de comboio na Índia. Vou-lhes perdendo a conta. Mas em todas encontro um fascínio especial, um chamado obscuro, qualquer coisa escondida ainda por descobrir. 

As moscas picam como vespas por cima da roupa, as caras mais indesvendáveis cruzam-se nas plataformas. De onde vem este sikh de turbante cor-de-laranja e uma estranha pressa na mecânica dos passos? Com que sonha esse velho senhor enrugado bebendo a sua mistela de chá, leite e açúcar de olhar perdido nas linhas paralelas que se encontrarão provavelmente no infinito? Quem terá direito à ternura daqueles olhos enormes, negros, aveludados, que espreitam por entre as pregas de um chawl púrpura?

Homens escuríssimos de longos bigodes; carregadores de berrantes camisas vermelhas e cor-de-rosa; mulheres de meia idade de óculos de aros de massa grossa, barrigas à mostra caindo sobre os lunghis como odres apenas meio cheios; rapazes magros de dhotis brancos e chinelos cambados; guardas de estação de pomposas fardas castanhas e pingalins na mão; raparigas exibindo na testa bindis de cores vivas: encarnados, verdes, azuis, amarelos; homens ocidentalizados de fato e gravata e calças de ganga; gente suando em bica na exasperação do calor húmido; as carruagens enfileiradas num silêncio de ferros prometendo-me novos destinos e cumprindo sempre as suas promessas.

Volta e meia, num pequeno apeadeiro onde o comboio pára por segundos, há uma criança escura e suja que entra de gatas, um pano sem cor por entre os dedos de uma das mãos, esfregando o chão das carruagens, mergulhando para debaixo dos bancos numa atarefada recolha de migalhas e bocados de comida e de papel. Há quem lhe conceda o favor de uma moeda de uma, duas, cinco rupias. Sem palavras, o menino continua rastejando o seu trabalho.

De repente, em Goa, entre Cuncoim e Canacona, enquanto o velho jipe galga com esforço os quilómetros da estrada esburacada, por entre a verdura intensa dos cajueiros, dos eucaliptos e dos tamarindos, recortam-se os quadrados esmeralda dos arrozais. Tanto verde consome os olhos. E quando, numa curva do caminho, surge a mancha alaranjada das mulheres que vendem mangas, papaias e cocos, parece que qualquer coisa fica, sem se saber ao certo porquê, para sempre fora do seu lugar.

E Colva outra vez: essa espécie de minha casa distante continuamente à minha espera.

O meu amigo Michael Fernandes conta os dias para regressar a Portugal exibindo o seu passaporte tão português.

O meu amigo Durigo morreu entretanto, no meio de duas viagens minhas.

Nomes truncados: Durigo – Do Rego.

Tinha um restaurante extraordinário, cozinhava sarapatel e ambotik de tubarão, jogou futebol quando era novo no Vasco da Gama.

Em Goa, o jogo que fazia vibrar a malta era o Vasco da Gama-Churchill. Ninguém gostava do Churchill que pertencia aos Churchill Brothers.

Vasco da Gama-Churchill: não pode haver no mundo outro jogo assim.

A importância dos nomes.

A dimensão dos nomes.

O sol brilha pela manhã e a águia vem pescar.

Um homem com um apito tira russos do mar à força de gestos e sopradelas.

Percorro as páginas da gente que morre: Bernardo de Melo, Benjamim Barretto.

Já ninguém fala em português.