Eutanásia: quem decide?


Referendar a despenalização da eutanásia é referendar se queremos uma alteração do modelo da nossa sociedade, que ao invés de priorizar a vida, valorizando-lhe acima de tudo, passa a apreciar a morte, antecipando-a quando um indivíduo a solicite


Muito se tem escrito sobre a “boa morte”, como se houvesse mortes boas e mortes más, como se todas as mortes não nos deixassem um vazio e até fossem algo desejável para todos, até para o próprio que a abraça deixando para trás tudo o que foi e o que é. Se falamos de morte, é imperativo falar de vida, e quanto à vida ainda nos sobra muito mais para dizer.

O debate público tem suscitado muitas paixões e posições extremas de quem participa ativamente nesta reflexão, o que não é de estranhar, porque se de um lado os argumentos são muito mais imediatos, assertivos e percetíveis, do outro apresentam-se razões que transcendem a própria natureza humana, valores que nos unem mas são invisíveis, sentimentos que são invocados mas pouco praticados. Estamos, assim, perante uma discussão transversal que ocorre simultaneamente em vários círculos, convocando a ética, o enquadramento jurídico, a religião e a política. Uma discussão que à primeira vista pode parecer muito prática e técnica e com efeitos circunscritos à sua substância, mas que, no entanto, vai desviando do foco o que verdadeiramente implica alterar a forma como tratamos e encaramos a vida e a morte na sociedade contemporânea, com argumentos simplistas esgrimidos de forma primária para que, intencionalmente, bloqueiem a reflexão dos cidadãos, colocando-os à superfície da problemática.

Em concreto, a favor da despenalização desta prática temos o fator sofrimento e a dignidade na hora da morte, e acresce também o objetivo de se referendar esta matéria, tornando-a uma decisão de todos, logo, a meu ver, desresponsabilizando os decisores políticos, que são quem deve analisar a fundo esta matéria, constituindo grupos de trabalho que promovam a reflexão conjunta entre cidadãos e decisores.

O referendo é cada vez mais um instrumento de conveniência para a classe política, iludindo o cidadão que, sentindo a responsabilidade da decisão, se torna um militante instrumentalizado de causas perdidas para os partidos políticos que o reivindicam. A discussão fica sempre pela espuma ou ao nível da epiderme, seja porque nós, cidadãos, não estamos preparados para mergulhar a fundo em questões tão profundas como esta, seja porque os decisores políticos, propositadamente, resumem a argumentação a soundbites que manipulem a opinião pública, capturando-a numa rede que não permita ver mais além do que é constante e ruidosamente discutido e repetido até à exaustão. Um ciclo que se instala e do qual é difícil sair, de tão bem que é montado e que, no imediato, tanto serve ao cidadão que se envolve e sente que faz parte da decisão como ao que convoca para a discussão e decisão, partilhando as despesas da responsabilidade decisória.

Referendar a despenalização da eutanásia é referendar se queremos uma alteração do modelo da nossa sociedade, que ao invés de priorizar a vida, valorizando-a acima de tudo, passa a apreciar a morte, antecipando-a quando um indivíduo a solicite. Mas não só… Este referendo, a acontecer, é a tentativa evidente de colocar o interesse individual acima do interesse universal, fazendo com que possa emergir daqui um novo posicionamento e uma mentalidade que provoque uma rutura com os princípios e valores que nos regem e unificam na nossa vida em sociedade.

Em suma, a eutanásia poderá incluir–se na já gasta agenda de matérias fraturantes que nos tem sido imposta nos últimos anos por alguns membros da classe política, que o têm feito quase sempre sem antes terem a coragem de debater em campanhas eleitorais as mesmas matérias. A eutanásia é, pois, um exemplo do que não deverá ser decidido em referendo nem decidido politicamente em sede parlamentar, promovendo a sua discussão na campanha eleitoral das próximas eleições legislativas, onde cada partido político assuma a sua posição clara e inequívoca sobre a sua despenalização.

Estou ciente de que esta sugestão é politicamente incorreta porquanto os candidatos, em geral, fogem de discussões desta natureza e procuram resumir as suas declarações a questões que dão votos, se possível sem qualquer tipo de polémica.

Escreve quinzenalmente à segunda-feira


Eutanásia: quem decide?


Referendar a despenalização da eutanásia é referendar se queremos uma alteração do modelo da nossa sociedade, que ao invés de priorizar a vida, valorizando-lhe acima de tudo, passa a apreciar a morte, antecipando-a quando um indivíduo a solicite


Muito se tem escrito sobre a “boa morte”, como se houvesse mortes boas e mortes más, como se todas as mortes não nos deixassem um vazio e até fossem algo desejável para todos, até para o próprio que a abraça deixando para trás tudo o que foi e o que é. Se falamos de morte, é imperativo falar de vida, e quanto à vida ainda nos sobra muito mais para dizer.

O debate público tem suscitado muitas paixões e posições extremas de quem participa ativamente nesta reflexão, o que não é de estranhar, porque se de um lado os argumentos são muito mais imediatos, assertivos e percetíveis, do outro apresentam-se razões que transcendem a própria natureza humana, valores que nos unem mas são invisíveis, sentimentos que são invocados mas pouco praticados. Estamos, assim, perante uma discussão transversal que ocorre simultaneamente em vários círculos, convocando a ética, o enquadramento jurídico, a religião e a política. Uma discussão que à primeira vista pode parecer muito prática e técnica e com efeitos circunscritos à sua substância, mas que, no entanto, vai desviando do foco o que verdadeiramente implica alterar a forma como tratamos e encaramos a vida e a morte na sociedade contemporânea, com argumentos simplistas esgrimidos de forma primária para que, intencionalmente, bloqueiem a reflexão dos cidadãos, colocando-os à superfície da problemática.

Em concreto, a favor da despenalização desta prática temos o fator sofrimento e a dignidade na hora da morte, e acresce também o objetivo de se referendar esta matéria, tornando-a uma decisão de todos, logo, a meu ver, desresponsabilizando os decisores políticos, que são quem deve analisar a fundo esta matéria, constituindo grupos de trabalho que promovam a reflexão conjunta entre cidadãos e decisores.

O referendo é cada vez mais um instrumento de conveniência para a classe política, iludindo o cidadão que, sentindo a responsabilidade da decisão, se torna um militante instrumentalizado de causas perdidas para os partidos políticos que o reivindicam. A discussão fica sempre pela espuma ou ao nível da epiderme, seja porque nós, cidadãos, não estamos preparados para mergulhar a fundo em questões tão profundas como esta, seja porque os decisores políticos, propositadamente, resumem a argumentação a soundbites que manipulem a opinião pública, capturando-a numa rede que não permita ver mais além do que é constante e ruidosamente discutido e repetido até à exaustão. Um ciclo que se instala e do qual é difícil sair, de tão bem que é montado e que, no imediato, tanto serve ao cidadão que se envolve e sente que faz parte da decisão como ao que convoca para a discussão e decisão, partilhando as despesas da responsabilidade decisória.

Referendar a despenalização da eutanásia é referendar se queremos uma alteração do modelo da nossa sociedade, que ao invés de priorizar a vida, valorizando-a acima de tudo, passa a apreciar a morte, antecipando-a quando um indivíduo a solicite. Mas não só… Este referendo, a acontecer, é a tentativa evidente de colocar o interesse individual acima do interesse universal, fazendo com que possa emergir daqui um novo posicionamento e uma mentalidade que provoque uma rutura com os princípios e valores que nos regem e unificam na nossa vida em sociedade.

Em suma, a eutanásia poderá incluir–se na já gasta agenda de matérias fraturantes que nos tem sido imposta nos últimos anos por alguns membros da classe política, que o têm feito quase sempre sem antes terem a coragem de debater em campanhas eleitorais as mesmas matérias. A eutanásia é, pois, um exemplo do que não deverá ser decidido em referendo nem decidido politicamente em sede parlamentar, promovendo a sua discussão na campanha eleitoral das próximas eleições legislativas, onde cada partido político assuma a sua posição clara e inequívoca sobre a sua despenalização.

Estou ciente de que esta sugestão é politicamente incorreta porquanto os candidatos, em geral, fogem de discussões desta natureza e procuram resumir as suas declarações a questões que dão votos, se possível sem qualquer tipo de polémica.

Escreve quinzenalmente à segunda-feira