Até os anjos podem sair do armário


Onde se faz uma salada-russa, começando na declaração de Adolfo Mesquita Nunes, passando pela revolta dos bispos portugueses contra o Papa e acabando no universalismo e na esquerda


Pelo facto de a um sete se seguir um oito, vivemos em dois anos seguidos (2017 e 2018) dois aniversários redondos de dois momentos históricos: os 100 anos da Revolução de Outubro e os 50 anos do Maio de 68, ano marcado por uma série de revoltas, momentos simbólicos ligados à geração que se seguiu à ii Guerra Mundial, que vão desde o massacre na Praça das Três Culturas no México aos punhos negros do Black Power no pódio do Estádio Olímpico e à chamada Primavera de Praga, passando pelas manifestações e greves em França, sucedendo-se a contestação nos EUA à Guerra do Vietname e desaguando em junho de 1969, na rebelião da comunidade gay em Stonewall.

A multiplicar as coincidências, vivemos em Portugal, na semana passada, o grito do Ipiranga do bispo Clemente revoltando-se contra o Papa Francisco e ordenando que os casais “recasados” têm de abster-se de sexo para poderem ter lugar de corpo inteiro na fé; e um vice-presidente do CDS a assumir que é gay.

Arrumemos primeiro os assuntos da espuma dos dias, seguindo depois para as lutas na Igreja Católica e acabando nos significados, continuidades e ruturas entre 1917 e 1968.

A assunção da sua orientação sexual por parte de um vice-presidente do CDS, Adolfo Mesquita Nunes, é um facto importante, até porque é feito por um dirigente do partido com as votações mais homofóbicas do parlamento. Votou em 2010 contra o casamento gay e votou contra a adoção de crianças por parte de casais homossexuais. Ao contrário de outros que usam a falsa política dos vícios privados, públicas virtudes. Adolfo Mesquita Nunes veio dizer que não havia nenhum mal na sua escolha e que, não fazendo segredo dela, pretendia fazer das suas palavras um momento contra a discriminação a que muitos ainda estão sujeitos. Para ele, confessa o próprio em entrevista ao “Expresso”, “não é um ato de coragem”, mas não se esquece dos outros que precisam dela: “Para eu não precisar de nenhuma coragem para estar aqui a ter esta conversa, houve muita gente que chocou, provocou, correu riscos, desafiou, teve coragem, uma coragem infinitamente superior.” Um dos primeiros efeitos das declarações, para além dos elogios generalizados na comunicação social, foi levar a presidente do partido do entrevistado, Assunção Cristas, a descobrir o orgulho por ter Adolfo com vice-presidente. Só falta esse sentimento transformar-se em ação e o CDS/PP deixar de ser homofóbico em todas as votações sobre matérias contra a discriminação das pessoas LGBT (ou mais recentemente alargada a designação para incluir as pessoas intersexo, para LGBTI ou LGBTQI, quando alude aos estudos e às teorias Queer).

O que não será difícil, não fosse a direita portuguesa estar alinhada com os setores mais conservadores e sacristas do país e ligada a setores da Igreja tradicionalistas e com pouco pensamento de Cristo e muito da hierarquia. O ser gay não é uma questão de esquerda ou direita, é uma questão de liberdade: as pessoas têm direito de amar como muito bem entendem, desde que a sua forma de o fazer não colida com a liberdade dos objetos do seu desejo. É, aliás, possível ser liberal na economia, como Macron, e bater-se contra a discriminação a que ainda estão sujeitas, nas nossas sociedades, determinadas orientações sexuais. Não é por acaso que tanto Adolfo Mesquita Nunes como Emmanuel Macron se definem como liberais. São favoráveis a que as pessoas tenham liberdade sexual, desde que estejam forçadas a viver numa sociedade em que precariedade, desemprego e baixos salários sejam regra para a grande maioria da população.

As declarações do bispo português Manuel Clemente sobre a desejada castidade dos recasados para poderem comungar na Igreja Católica e receber outros sacramentos inserem-se menos em questões de sexo e mais numa rebelião contra o atual Papa. Não é segredo que os setores mais tradicionalistas da Igreja Católica têm a relação particular com o exemplo de Cristo que tinham os inquisidores, num capítulo d’“Os irmãos Karamazov” de Dostoievski, perante um Messias ressuscitado. O grande inquisidor tinha Cristo renascido à sua frente. Estas são as palavras que lhe dedicou, segundo o romancista Fiodor Dostoievski : “És Tu? És Tu? – Como não recebeu resposta imediata, acrescenta rapidamente: – Não respondas, cala-Te. O que poderias dizer–me? Sei bem o que me dirias. Também não tens direito de acrescentar seja o que for àquilo que foi dito por Ti anteriormente. Porque vieste incomodar-nos? É que vieste incomodar-nos e Tu próprio sabe-lo muito bem. Sabes o que Te vai acontecer amanhã? Não sei quem és nem quero saber: que sejas Tu ou apenas uma aparência d’Ele, amanhã mesmo condeno-Te e queimo-Te na fogueira como aos pior dos hereges.” Para o grande inquisidor, a situação era fácil de resolver: a vinda de Cristo era inoportuna e, como ele tinha a capacidade de ressuscitar, viria noutra altura em que não incomodasse tanto a ordem estabelecida.

Jorge Mario Bergoglio não é Cristo. Mas entre o seu investido Papa Francisco, que na encíclica “Laudato Si” condena o capitalismo como destruidor do meio ambiente e da humanidade, e os setores tradicionalistas, a nata da Igreja portuguesa parece ter escolhido o lado da conspiração contra a Santa Sé. Uma movimentação que está bem descrita num artigo recente do “Guardian” e num trabalho jornalístico da jornalista Patrícia Fonseca na “Visão”: “Está instalada a guerra nos bastidores do Vaticano.”

Desde o início que o Papa tentou virar a Igreja para os mais pobres e aqueles que sofrem mais. Em vez de uma doutrina do castigo sobre quem sofre e cegueira para quem enriquece, ele prefere citar o Evangelho (Mateus, vii: 1-2): “Não julgueis para não serdes julgados.” Para o Papa, um cristão não deve apontar o dedo aos outros, mas estender-lhes a mão para levantá-los.

Do outro lado estão os Clementes desta vida, como o cardeal norte-americano Raymund Burke, que lidera a ala conservadora do Vaticano, notabilizado por entrar nos recintos com um manto tão comprido que necessitava de ser seguido por pajens e que foi afastado por Bergoglio do cargo que exercia no tribunal superior de Roma.

As questões do sexo, que interessavam pouco a Jesus Cristo em comparação com estes bispos reduzidos ao celibato público, não passam de desculpas para uma guerra política que pretende realinhar as igrejas com os poderosos e a bolsa de valores do capital. É desse modo que as declarações do bispo português Clemente podem ser lidas, como momento de contar espingardas dos conservadores e contestação velada à encíclica “Amoris Laetitia” (Alegria do Amor), em que, numa passagem do capítulo 8, o Papa explicita que pessoas que vivem segundos casamentos ou em união de facto “podem viver na graça de Deus, podem amar e crescer na vida da graça e da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja” – acrescentando que “em certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos”.

Não sendo eu religioso, em que é que me interessam estas guerras de sacerdotes? Por duas razões: o fato de não crer não significa que não seja produto de uma mesma cultura. E o facto de não ser católico não quer dizer que ignore o papel que devem ter os católicos na transformação comum do mundo que partilhamos. Aliás, esta ideia universalista de transformação para todos devemo-la em grande parte a São Paulo, quando ele pega numa religião de um só povo e a transforma numa fé que pode abranger toda a gente: “Não existem mais judeus nem gregos, não há mais escravos nem senhores, não há mais homens nem mulheres.” O amor em Cristo permitiria tornar-nos todos iguais.

De alguma forma, é a dinâmica contrária que está expressa numa determinada leitura hegemónica entre a revolução proletária de 1917 e o ciclo de revoltas de 1968. Numa pretendia-se um assalto aos céus que resultasse na transformação universal da terra e na possibilidade de uma nova sociedade sem exploradores nem explorados; no outro momento assistir-se-ia à afirmação das identidades, à defesa da ideia de que é impossível ambicionar a transformação revolucionária da sociedade, mas que é possível, no quadro do capitalismo, fazer apenas um conjunto de reformas, que tornem menos desigual esta sociedade. Não há sujeito ou sujeitos históricos da transformação social, mas grupos que necessitam de combater discriminações a que estão sujeitos, afirmando a sua identidade específica. Quanto muito, esses momentos de afirmação serviriam, como defende Rancière, para que a parte dos sem parte tome a palavra no pressuposto da igualdade, conseguindo com esta ação pontual menos desigualdade para alguns.

Esta ideia de “política de identidades”, “grupos identitários” ou “identidades coletivas” é muito recente. Em 1968, na “International Enciclopedia of the Social Sciences”, a única entrada que se encontra com o termo “identidade” é um artigo de Erik Erikson sobre “Identidade Psicossocial”, ligada “à crise de identidade dos adolescentes que procuram saber quem são”. No artigo que explicita a evolução do conceito, o historiador marxista Eric Hobsbawm defende que qualquer esquerda que se preze tem de combater a discriminação a que vários grupos sociais estão sujeitos, mas que o seu combate não se pode esgotar nessa tarefa fundamental e inadiável: o combate da esquerda tem de ter como objetivo a transformação total da sociedade e tem de ser universalista.

As injustiças não acabam na assunção da sua orientação sexual por parte de Adolfo Mesquita Nunes. Embora seja mais livre um mundo em que os militantes do CDS/PP e qualquer outra pessoa possam viver livremente e amar quem quiserem.