Marabar, ou a traiçoeira facilidade das evidências


O “está-se mesmo a ver” tem uma força sedutora a que é difícil resistir, sobretudo quando não se está com disposição para o esforço e, muitas vezes, a coragem necessários para analisar mais fundo e averiguar e refletir para lá do repentismo daquilo a que já chamei “a ciência do táxi”


“A Passage to India” é um dos mais belos e inteligentes livros que já li, e o filme que David Lean realizou é uma obra de arte a que nunca me canso de regressar. Livros e filmes são um consolo e uma porta de acesso ao mundo e à vida, e à tentativa da sua compreensão. Está por aí à venda uma cuidada edição da Relógio D’Água do livro de E. M. Forster.

Folheei e recordei-me de que já vi, como certamente muitos outros também já viram, magníficos (passe a ironia) exemplos de como a mesma traiçoeira facilidade das evidências que ocorre a respeito do episódio de Adela Quested nas grutas Marabar conduz a precipitadas e trágicas conclusões erradas. Já os vi na vida em geral e já os vi na vida dos tribunais, das empresas e da comunicação social, por exemplo. E, infelizmente, creio que ainda continuarei a vê-los, pois o “está-se mesmo a ver” tem uma força sedutora a que é difícil resistir, sobretudo quando não se está com disposição para o esforço e, muitas vezes, a coragem necessários para analisar mais fundo e averiguar e refletir para lá do repentismo – muitas vezes alimentado pelo preconceito e/ou pela preguiça (ou por outras malsãs pulsões) – daquilo a que já chamei “a ciência do táxi”. 

A segunda das três partes do livro chama-se precisamente “Grutas”. O Dr. Aziz prometera levar Mrs. Moore e Miss Quested a Marabar. Uma vez lá, e após jornada longa e cansativa, Adela e Aziz deixam os outros e sobem até à entrada das grutas mais afastadas, e dentro de uma delas ela desorienta-se, entra em pânico, foge, magoa-se; e, num primeiro momento, tudo parece apontar para que tenha sido molestada sexualmente por Aziz. Este estranho incidente serve de rastilho ao desenvolvimento da intriga, seja no que respeita à explosão das tensões raciais entre colonizadores e colonizados, seja no que respeita ao confronto de Adela consigo mesma e com aquilo que quer, afinal, da vida. Seja como for, perante a inicial força das evidências circunstanciais – e não estando claro, sequer para si mesma, se Adela sofrera um ataque de ansiedade ou apenas efeitos relacionados com o eco e a claustrofobia, ou mesmo se projetara alucinadamente incertezas ou desejos seus –, a opinião colonial logo considerou Aziz culpado de agressão sexual. 

Que outra coisa senão um agressor poderia ser um médico muçulmano naquele momento e naquele local? Contexto e circunstâncias, eis o cocktail fatal, com o saboroso tempero do preconceito a rematar. Mais a mais, Adela está noiva do magistrado local, inglês convencional e aborrecido. O julgamento estabelece uma fratura na sociedade local, nas relações coloniais e em cada um dos protagonistas, em especial em Miss Quested. Esta confronta-se consigo mesma, profundamente, ao mesmo tempo que, mesmo sem querer, confronta a comunidade com as suas pré-compreensões e com a leviana precipitação das conclusões fáceis e convenientes. Depois, Adela confunde-se, contradiz-se, vê melhor, acabando por concluir que tudo não passou de um equívoco, e que Aziz nada lhe fez. Estava-se mesmo a ver, não estava? 

Escreve à sexta-feira