Os esquecidos da política da selfie


Há vários dias que as centenas de trabalhadores daquilo que foi durante dezenas de anos a fábrica da Triumph lutam pela sua dignidade e por que lhes paguem o que lhes é devido: os ordenados em atraso e as dezenas de anos que deram de vida àquela empresa. Numa altura em que os comentadores estão…


As centenas de trabalhadoras e de trabalhadores da fábrica da Triumph, há pouco mais de um ano vendida a uma espécie de empresa de conveniência para a levar ao fundo sem deixar rastos na prestigiada casa-mãe, devem ter sido os únicos portugueses atropelados pela desgraça com quem o atual Presidente da República não fez questão de tirar uma selfie amiga com o abraço da praxe. Estes mais de 400 trabalhadores não receberam nem o subsídio de Natal nem os ordenados devidos a partir de novembro. Em troca receberam uma carta para os convidar a ficar em casa até à produção se “regularizar”.

Desconfiados da marosca, a grande maioria não aceitou a “conveniente” carta e continuou a ir trabalhar todos os dias, mesmo quando lhes fecharam as luzes. Uns dias depois impediram que gente fosse carregar em camionetas os produtos já feitos, a que provavelmente se seguiriam as máquinas sofisticadas, com um alto valor. Em setembro já tinham sido “roubados” os computadores, um deles com uma valiosa pen onde estão as instruções para a produção de alguns modelos das máquinas.

Desde aí, estas centenas de operários, a grande maioria mulheres, não desarmam e ficam em turnos guardando a sua fábrica. Muitas delas deram dezenas de anos de trabalho à empresa e falam com orgulho de várias vezes a sua fábrica ter sido considerada a melhor do grupo e dos esforços acrescidos, que lhes ficaram marcados no corpo, com as mazelas e as doenças profissionais crónicas que têm, para cumprir prazos de entrega e de encomenda que para outras fábricas pareciam impossíveis.

A trabalhadora mais velha entrou ao trabalho com 14 anos, tem mais de 50 anos na fábrica e chama-se Maria José Gomes. Há mais de um ano, quando a Têxtil Gramax Internacional “comprou a antiga fábrica da Triumph”, que produzia mais de 20 milhões de euros por ano para a marca-mãe e tinha mais de 500 trabalhadores, o atual ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, voltou-se para a operária e, com um sorriso, disse-lhe: “Você ainda vai ter muitos e bons anos para dar nesta fábrica.” Ao lado sorriam, impantes, os administradores da Gramax Internacional. Um ano e picos depois, os ditos administradores já se demitiriam, segundo as operárias para não poderem ser legalmente responsabilizados pelo desastre, e o ministro não voltou a aparecer. “Bem gostava de o ver, para lhe dizer umas coisas”, confessa Maria José Gomes.

Um ano depois, a Triumph deixou com uma pressão matemática de fazer encomendas à unidade fabril; passado o prazo de um ano, está legalmente irresponsabilizada dos compromissos que tinha com os seus trabalhadores. Quando esse prazo se esgotou, as encomendas também acabaram.

As mulheres e os homens da fábrica perderam as ilusões. Na zona onde estão havia um monte de indústrias e restam agora muito mais ruínas que fábricas e empresas. À frente estão as instalações de uma das maiores distribuidoras portuguesas, a Electroliber, cujas instalações, com vidros partidos e grafitados, servem apenas para gravar telediscos. “O filho do Tony Carreira, acho que o Mickael, gravou no outro dia um ali.”

Claro que a maioria dos trabalhadores queriam que os respeitassem, respeitassem a qualidade do seu trabalho, e que continuassem a poder viver do seu trabalho, recompensado com um pequeno salário, de uma atividade económica em que outros retiravam milhões; mas neste momento, para eles, a questão é outra. Não veem capacidade de arranjar clientes e manter a sua fábrica num mercado que deslocalizou a produção para países sem normas sociais e de salários ainda mais baixos. Neste momento, para elas e para eles, o que lhes é devido é respeito: se vão fechar a fábrica, não o façam com negociatas mentirosas, assumam os seus atos e paguem até ao último tostão os salários e as indemnizações devidas para quem, na sua maioria, trabalhou mais de 30 anos numa empresa.

É certo que para nós, como comunidade, há outras questões que se colocam: que governos e politicas económicas permitiram que, a troco de umas migalhas de subsídios europeus, se destruísse todo o tecido produtivo nacional e se substituísse por uma espécie de sociedade de aluguer de quartos e venda de tapas gourmet de nutella aos turistas. É uma discussão mais larga, em que a nossa capacidade de decisão está minada pela corda ao pescoço que nos puseram, com o nome de serviço da dívida, ao criarem uma integração europeia e colocarem-nos numa globalização económica feita para ajudar a especulação financeira e destruir a capacidade de organização e reivindicação de quem trabalha.

Em Portugal foram ao fundo cerca de meia dúzia de instituições financeiras. Segundo os jornais, os contribuintes já lá meteram mais de 14 mil milhões de euros; esta semana ficámos a saber que os bancos estão “obrigados” a pagar muito mais de 17 mil milhões de euros pelos buracos da passagem do BES para o Novo Banco. Daqui a uns dias vamos ver que vão dizer que não conseguem fazê-lo, sob perigo de irem para a falência.

No regime em que vivemos, uma espécie de “socialismo para capitalistas”, quando há dividendos – e eles foram muitos milhares de milhões de euros –, eles vão para os acionistas e os prémios para os gestores. Quando há buracos, são os contribuintes a pagar e os operários das fábricas a ir para o desemprego.

Quando, daqui a uns dias, na ausência de outra ocupação vistosa, o senhor Presidente da República visitar as mulheres e homens de Sacavém que lutam pelo que é seu de direito, para além de lhes dar a solidariedade de circunstância, que fica sempre bem nas câmaras de televisão, explique-lhes como aceitamos governos e políticas, em que ele esteve sempre envolvido com os partidos do “arco da governação”, que acharam normal discutir-se neste momento, a nível europeu, 655 mil milhões de euros de apoio aos bancos privados e nem um cêntimo de apoio ao emprego, à indústria e às pessoas.

A banca deve servir para apoiar o tecido produtivo, apoiar a economia. Não pode ser um conjunto de marcas a gerar o produto derivado mais esdrúxulo para canibalizar a economia e o método mais prático para fugir aos impostos e colocar o dinheiro em paraísos fiscais. Esta dinâmica especulativa tem de ser destruída e isso dificilmente será feito com políticos tão próximos dos principais beneficiários da especulação, sempre à espera da próxima porta giratória que se abra e lhes permita passar da política aos paraísos financeiros.

Nós sabemos que os operários não têm a capacidade de oferecer fins de ano e férias paradisíacas em iates a políticos. Ou, dito de outra maneira, embora tenham sido os banqueiros a sorrir com a benesse aos amigos políticos, foi de facto quem trabalhou que pagou tão grande riqueza.

Uma sociedade que leva para a rua, o frio e a pobreza quem trabalhou toda uma vida, enquanto continua a dar cada vez mais riqueza e poder aos donos do capital financeiro, não é uma sociedade digna de se chamar civilizada. Um dia, isto vai rebentar, porque as pessoas não aguentam toda a injustiça até ao final dos tempos. Um dia, tudo será completamente diferente, e de uma coisa podemos ter desde já a certeza: não se vai resolver com uma selfie.