A Torre das palavras


Em que se fala que as palavras não querem sempre dizer o mesmo e que quando ouvimos falar do “politicamente correto”, podemos estar a ouvir uma coisa e o seu contrário, conforme quem convoca a ideia


O que mais me impressiona quando discutimos usando palavras como “populismo” ou “politicamente correto”, ou até “democracia” e “liberdade”, é o facto de, embora estarmos todos a usar as mesmas palavras, não estamos todos a falar da mesma coisa. Isso acontece com a maioria das palavras e ideias que de alguma forma têm o poder de nos mobilizar: elas são palavras disputadas.

Cada grupos social luta para lhe dar um determinado significado que se enquadre na sua ideologia e na sua forma de tentar ganhar a hegemonia na sociedade. Isso é muito visível com a palavra “liberdade”: ela tanto defende o direito, muito recente nos milhares de anos de História, dos trabalhadores a organizarem-se e manifestarem-se em defesa dos seus interesses; como é usada para justificar o alegado direito que os patrões têm de despedir, com o menor custo económico possível. A palavra “liberdade” usa-se tanto para expressar direitos políticos, como para embrulhar ideias, que cristalizam o poder dos mais ricos sobre os mais pobres, disfarçando-as de “liberdade” do mercado.

O mesmo acontece com o conceito do “politicamente correto”, ele é simultaneamente uma revindicação de poder expressar ideias sem censuras prévias, tal como é usado como um instrumento para tentar calar afirmações de emancipação de determinados setores sociais, desqualificando as suas reivindicações. Tendo a concordar com Ricardo Araújo Pereira quando ele defende que as palavras não podem ser censuradas e que as ideias se combatem com ideias. Mas, ao mesmo tempo, verifico que a utilização dominante da ideia do combate ao “politicamente correto”, é a afirmação que esse “politicamente correto” é o discurso da defesa do direito das mulheres, dos negros, dos imigrantes, dos homossexuais, e de quem trabalha, de querer uma sociedade mais justa, com mais liberdade e com menos desigualdades de poder e de partilha de recursos.

Para mim, é bastante óbvio que o verdadeiro discurso generalizado sobre o “politicamente correto” é um instrumento nas mãos daqueles que defendem a manutenção da situação atual, que garante o poder de muito poucos sobre a maioria da população. E isso é feito pela ocupação quase absoluta dos lugares de comunicação, opinião e ensino – aquilo que antigamente se poderiam apelidar de Aparelhos Ideológicos de Estado – por parte dos defensores da ideologia da classe dominante. Nesse contexto, o mantra do “politicamente correto” surge com uma arma acrescida de desqualificar qualquer discurso pela emancipação social, como uma espécie de conto de fadas em que existiria uma mítica sociedade dominada pelas afirmações “histéricas das mulheres” contra os homens; dos trabalhadores privilegiados contra o resto da população, que teria ainda menos direitos graças a eles; dos imigrantes que vêm roubar o nosso trabalho; dos miríficos lóbis gay, que controlam não se sabe o quê. Tudo gente que dominaria na realidade o mundo e a comunicação social. Quando oiço a afirmação que a grande maioria dos jornalistas e comunicação social seriam de esquerda – uma frase normalmente proferida pela dezena de dirigentes, ex-dirigentes e futuros dirigentes dos partidos de direita e seus intelectuais orgânicos que têm pouso fixo nas televisões (acho aliás que a última vez que ouvi isso foi num painel, de um canal público de televisão, quase todo constituído por cronistas do Observador) – fico muito enternecido e veem-me lágrimas aos olhos de comoção. Esses corajosos comentadores oporiam, ao domínio do “politicamente correto”, um discurso “fora da caixa” contra os privilegiados da nossa sociedade, que com alguma ironia são aqueles que menos poder têm nela.

Esse tipo de pensamento não passa de um expressão descomplexada do discurso dos interesses daqueles que têm o poder. É obviamente fruto de em pleno desenvolvimento, sem barreiras políticas e democráticas, do capital financeiro, temos uma sociedade em que é cada vez mais claro que quem manda são as finanças, e que para isso contam com a cumplicidade interessada da maioria dos detentores dos cargos políticos, através da constante política de “portas-giratórias” entre governos e grandes grupos financeiros.

Antigamente contentavam-se a explorar em silêncio, não fosse o Diabo tecê-las, hoje têm a força de dizer às claras o que pensam e tentar ainda silenciar os que pensam diferente. A luta pelo conteúdo das palavras é importante, até porque as palavras são poderosas e muitas vezes elas são a forma como se constroem os atos que as concretizam.

Uma das lendas e histórias mais interessantes na Bíblia é a que narra a construção e queda da Torre de Babel. A humanidade desafiou Deus ao tentar construir uma torre que tocava os céus. A Torre de Babel era uma construção que o Senhor não podia ignorar: mostrava a afirmação de génio e liberdade dos homens a erigir o seu próprio caminho. A torre foi derrubada por ordem divina e os homens divididos numa babélia de línguas. Deixaram de falar a língua divina em que cada palavra definia perfeitamente o seu objeto, dando todo o poder a quem a pronunciava. Deus tinha criado as coisas nomeando-as – o conhecimento da palavra concreta e perfeita que define uma coisa é uma forma de mandar nela. Conhecer é poder.

No seu livro “Génio”, Harold Bloom coloca a intenção de fazer uma espécie de anatomia destas ruturas que a genialidade antecipa: “Encontrar o extraordinário noutra pessoa pode ser enganoso ou dececionante. Chamamos-lhe ‘apaixonar-se’. O próprio verbo deve ser considerado uma advertência. Encontrar o extraordinário num livro – quer seja a Bíblia, quer em Platão, em Shakespeare, em Dante ou em Proust – é um benefício quase sem custos. O génio na sua expressão escrita é o verdadeiro uso da literatura para a vida.”

Bloom nega que o génio seja expressão do espírito de uma época e que estas condições de transcendência estejam encerradas nas grilhetas de uma qualquer relação social. Para ele, o génio não se explica no corrente, mas na possibilidade de atingir o excecional. “Todas as épocas são iguais”, escreve William Blake, citado pelo autor, “mas o génio está sempre acima da sua época.”

Mas há neles condições de transcendência, de redenção e utopia que nos permitem ajudar a falar numa língua “divina” que consegue uma espécie de Kairos, o momento em que Deus toca a História.

Escrevia, sobre isso, Ralph Waldo Emerson: “O mundo é jovem: os grandes homens do passado chamam por nós afetuosamente. Também nós podemos escrever Bíblias para unir novamente os céus e o mundo terreno. O segredo do génio consiste em não permitir que exista qualquer ficção para nós, em compreender tudo o que sabemos.

Como recita o poeta Manuel Gusmão, acerca da palavra mágica da poesia e dos seus desafios de alcançar aquilo que insistem que é impossível: “A poesia é que recapitula o mundo chamando em cada chama pela chama de cada sílaba.”

Esta ideia de disputar o conteúdo das palavras é a afirmação da sua importância na própria ação. Uma das coisas que aprendemos no último século, é que não basta estar num determinado lugar social para conseguir enunciar as palavras que ajudam a formar uma nova hegemonia, que construa uma sociedade mais igualitária. Ser-se oprimido não é a garantia suficiente para se ter um discurso antiopressão. O domínio de uma minoria é só possível pela conquista do silêncio de uma enorme maioria. É óbvio que a desigualdade de poder está inscrita materialmente na realidade social, mas ela perdura ou altera-se pela força das ideias.

Essas ideias são redentoras, se ganharem a consciência da maioria das pessoas, mas sobretudo se a sua concretização significar a libertação de facto da esmagadora maioria da sociedade. Ser-se feminista não é ser-se machista ao contrário, e em vez da misoginia pregar a misandria (o ódio contra os homens); ser-se antirracista, não é ser-se por um racismo contra os brancos; nem defender uma sociedade sem classes sociais significa a concretização prática da anedota em que alguém pergunta:

“ – O que é o capitalismo?

– É a sociedade que permite a exploração do homem pelo homem.

– E o comunismo?

– É exatamente o contrário.”

Sendo que o contrário da exploração, não é, como na anedota, a mesma exploração por outros, mas o fim mesmo dessa mesma exploração. É um caminho longo e complicado. Defendia o filósofo Rancière que só existe política, quando a parte dos sem parte exige a palavra, no pressuposto da igualdade, e consegue, num determinado momento, uma rutura em que a sociedade consegue ser mais igualitária e mais justa.