Viva a democracia operária II


Sem co-gestão que lhes valesse, no final das contas quem tramou os trabalhadores da Autoeuropa foi mesmo o Código de Trabalho. Esse é o problema que temos de resolver


Nas fábricas da Volkswagen é histórica a tradição de participação dos trabalhadores nas decisões sobre o modelo de produção. Em Portugal o exemplo da Autoeuropa é raro, de tal forma que a co-gestão passou a ser conhecida simplesmente como o “modelo alemão”.

É justo reconhecer que histórico é também o debate na esquerda e nos setores sindicais sobre este paradigma de relação entre patrões e trabalhadores. Debate teórico à parte, não houve durante anos quem não saudasse a democracia operária vigente na Autoeuropa e a tranquilidade destoante das disputas laborais na generalidade das outras empresas.

Até que no verão passado este modelo produziu um impasse negocial quando os trabalhadores da Autoeuropa chumbaram em referendo um primeiro pré-acordo sobre as condições da laboração contínua na fábrica. Lendo os jornais e ouvindo os comentadores, de repente a democracia era menos democrática porque o resultado saiu desfavorável aos patrões e começaram as chantagens sobre a deslocalização da produção do novo T-ROC.

Na altura escrevi neste jornal um artigo a saudar a “democracia operária”, traduzida na vontade dos trabalhadores de recusar o acordo proposto. Para o caso era secundária a avaliação dos termos da negociação entre a Comissão de Trabalhadores e a administração. No texto sustentava, e continuo a sustentar, que excepto contágios pontuais no parque industrial de Palmela, “a Autoeuropa é a única grande empresa em Portugal que faz referendos para aprovar acordos, coisa nunca permitida por patrões nem por sindicatos em mais lado nenhum”.

Nos meses que se seguiram os trabalhadores da Autoeuropa elegeram nova Comissão de Trabalhadores que negociou um novo pré-acordo que foi novamente chumbado em referendo. A fábrica falou.

Foi quando os trabalhadores da Autoeuropa decidiram não ceder e fazer-se valer do modelo de co-gestão que ele mostrou as suas fragilidades. Apoiada pela lei laboral, a administração ignorou o que os trabalhadores chumbaram em referendo e impôs unilateralmente o novo horário de laboração contínua que obriga ao trabalho ao fim de semana.

De acordo com o comunicado interno distribuído aos trabalhadores, o novo modelo aplica-se até agosto e inclui 17 turnos semanais com turno da noite de segunda a sexta e produção ao sábado com dois turnos. Por enquanto domingo será folga fixa e o sábado pago a 100%.

O novo modelo transitório não se afasta muito do conteúdo dos pré-acordos que a fábrica já rejeitou. Podemos opinar sobre as condições previstas e os pagamentos suplementares mas isso não nos afasta do essencial, que é mesmo o horário. É um aspeto determinante na nossa organização social e familiar, não pode estar à mercê de qualquer capricho patronal. Só aqueles trabalhadores e trabalhadoras, incluindo bastantes casais e familiares, que vão ter de desencontrar todos os horários da sua vida é que sabem o verdadeiro custo dessa imposição.

A luta dos trabalhadores da Autoeuropa é justa e a sua resistência merece toda a solidariedade. O problema desta negociação é que estava desprotegida pela lei. Se a administração tem na mão o poder de impor de forma unilateral aquilo que bem entende, a negociação corre sempre o risco de não passar de um simulacro. As declarações de responsáveis políticos com peso governamental a embarcarem na chantagem da deslocalização é lamentável mas não deixa de ser subsidiária desta realidade.

A Volkswagen está hoje a lutar pela sua posição global depois dos escândalos das emissões que custaram milhões. O modelo alemão está a definhar e as primeiras vítimas foram as Comissões de Trabalhadores, incluindo os representantes sindicais presentes. Sem co-gestão que lhes valesse, no final das contas quem tramou os trabalhadores da Autoeuropa foi mesmo o Código de Trabalho. Esse é o problema que temos de resolver.

 

Deputada do Bloco de Esquerda