Cenários turísticos


O turismo ajuda a dar vida a lugares que de outra forma já teriam morrido, embora muitas vezes aquilo que se vê seja já só um cenário


A aldeia histórica de Sortelha está muito bem cuidada. Quem a recuperou fê-lo com esmero, com materiais adequados a um povoamento de transição entre a Beira Alta e a Beira Baixa. Quem a cuida e mantém sabe o que faz e sabe como lhe manter a traça para continuar a atrair o turismo e garantir a sua sobrevivência por mais alguns anos.

Só que passando para lá das muralhas, nessas ruas de pedra de grau elevado de inclinação, não se vê uma luz nas casas, não se vislumbra vida de gente. Tirando quem a visita e aqueles que atendem os visitantes, não há quase ninguém por aqui. A maioria das casas foram recuperadas, poucas são as ruínas, só que nem uma vela fulge na quieta melancolia de todos os seus caminhos.

Diz-nos a senhora que vende produtos locais que são poucos os residentes, quase nenhuns, as casas pertencem a gente de fora, gente que vem mais aos fins de semana e, sobretudo, no inverno. Acendem a lareira para aquecer a casa e lançam-se em longas caminhadas pelas serras e vales dos arredores.

Não há nada a criticar aqui, só constatar aquilo que acaba por ser a experiência de muitos outros locais do mundo – o interior desertifica-se, perdido o seu grau de atração, as pessoas zarpam para outras regiões em busca de melhores empregos (ou de empregos tão- -somente) e ficam para trás localidades vazias que se recuperam para atrair o turismo, para atrair o proprietário de fim de semana, para atrair o investimento em alojamento local.

Só que uma aldeia quase sem pessoas a viver, recuperada para servir o turismo, é ainda uma aldeia ou apenas um cenário? Com casas de fim de semana, alojamento local, lojas de recordações e sem residentes, não estaremos perante um resort típico que existe em função da vida que vem de fora e não da vida que tem dentro?

Essa é a grande questão destes tempos de turismo massificado e dos perigos a ele associados, entre eles o de a existência dos locais se resumir a cenário para um teatro de todos os dias. De lhe faltar vida interior para iluminar as paredes recuperadas.

Nestas ocasiões, não consigo deixar de pensar naqueles grandes investimentos imobiliários que se erguem sobre o que antes foi algum local de interesse histórico, desses cujos proprietários enchem os discursos de muitas frases que acabam em futuro (numa linguagem sempre passada de presente) e fazem questão de colocar uma placa assinalando o que ali estava ou dão ao empreendimento o nome do que destruíram.

Aqui trata-se de outra coisa sem deixar de ser o mesmo. Aqui não se destrói para construir de novo, reconstrói-se. Em Monsanto, por exemplo, essa “aldeia mais portuguesa” que o Estado Novo vendeu como bilhete-postal de um país bucólico, honrado na sua pobreza vivida entre os penedos, quanto da recuperação do castelo corresponde ao que foi realmente e quanto se deveu aos desejos da propaganda?

Sem as pessoas, sem o repositório das suas histórias, sem ninguém para transmitir oralmente as suas tradições, os seus costumes, as suas bisbilhotices, sem pequenos ódios, sem os defeitos e as virtudes, sem o grandioso e o mesquinho, uma aldeia, uma vila, uma cidade vai-se transformando em paredes sem alma, sem patine.

Uma vez, num filme (não importa qual, nem me recordo do título, nem vale a pena perder muito tempo a recordá-lo), ouvi um personagem dizer qualquer coisa como isto: para quê ir a Paris ver a Torre Eiffel quando Los Angeles tinha uma exatamente igual e ainda por cima com mais divertimento à sua volta?

Em Macau, no princípio desta grande transformação que a tornou na capital do jogo a nível mundial, superando mesmo a meca Las Vegas, um dos primeiros casinos grandiosos a serem erguidos foi o Veneza, que na sua experiência inclui passeios de gôndola pelos seus canais.

Imagino que ninguém vá a Las Vegas para ter a experiência de Paris ou a Macau para sentir como é estar em Veneza. Ninguém é enganado a esse ponto. O problema será quando nem mesmo em Paris se tenha a experiência de Paris ou Veneza já nada mais ofereça que uma horda de turistas a fotografar pombas na praça de São Marcos, fugidos os venezianos por causa dos preços especulativos e pelo excesso de visitantes.