O acórdão do Porto: outros problemas


Na jurisdição penal, as leis processuais têm vindo a limitar as competências do MP, impedindo-o de poder fazer reapreciar muitas das decisões dos tribunais


O recente acórdão da Relação do Porto fez já correr muita tinta e não vale a pena, porventura, discutir mais o seu triste conteúdo.

Ele permite-nos, em todo o caso, refletir sobre um conjunto de aspetos que, embora não diretamente relacionados com o que nele se estatuiu, não devem deixar de merecer a nossa atenção.

Desde logo, a ideia falsa da absoluta neutralidade dos magistrados e, com ela relacionada, a da existência de uma unitária “ideologia judiciária”.

Na verdade, também no seio das magistraturas existem sensibilidades ideológicas e culturais distintas, por mais lamentáveis que algumas possam ser.

Existem e ainda bem que se revelam, pois só assim as decisões por elas inspiradas podem ser publicamente escrutinadas.

Tal pluralismo cultural e ideológico não pode, ou não deve, com efeito, poder exprimir-se nas decisões judiciais fora dos quadros jurídico-políticos definidos pela Constituição e pelas leis.

Que isso possa acontecer deve preocupar-nos a todos e deve, sobretudo, importar aos que têm por missão formar os magistrados e aos que, a nível dos seus órgãos de governo e controlo democráticos, devem velar pela sua accountability e disciplina.

Este episódio, que não é inédito, nem infelizmente se circunscreve aos casos conhecidos mediaticamente, impõe ainda uma outra linha de reflexão.

Refiro-me aos instrumentos judiciais de que o Estado deve dispor para poder controlar e contrariar tal tipo de decisões.

Uma nota da PGR deu conhecimento público dos limites processuais ordinários do MP para poder recorrer deste acórdão.

No plano do recurso para a apreciação da sua constitucionalidade, a questão será, porventura, menos consensual.

Em todo o caso, o que esta ocorrência também revela é a desconformidade entre a lei processual penal – hoje influenciada por uma muito mal lida ideia de igualdade de armas – e as funções que a Constituição atribui ao MP.

A lei fundamental confere, com efeito, a esta magistratura as funções de defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar.

Por sua vez, o Estatuto do MP estipula que lhe compete velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis e impõe-lhe o dever de recorrer sempre que uma decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa.

Embora a sua iniciativa processual seja independente da orientação dimanada dos órgãos do poder político, o MP, por via do estatuto constitucional muito especial do procurador-geral da República, admite uma accountability institucional exigente.

Tal forma de accountability não se lhe dirige em exclusivo, antes pretende garantir aos cidadãos que, nos termos antes referidos, os tribunais e, portanto, todo o sistema de justiça não exercem um poder democraticamente incontrolado.

Todavia, no caso da jurisdição penal – como, aliás, em várias outras jurisdições –, as leis processuais têm vindo a limitar as possibilidades de recurso do MP, inviabilizando, assim, as suas competências constitucionais.

Tais limitações impedem-no de, no âmbito próprio do sistema judicial, poder fazer reapreciar muitas das decisões dos tribunais de grau inferior por outros de grau superior.

Elas reduzem, deste modo, o âmbito da garantia judiciária de que os cidadãos devem beneficiar.

Que este episódio não sirva, por isso, apenas para gáudio dos humoristas ou de comentadores ligeiros e preconceituosos: que ele permita, também, levar–nos a pensar a sério a necessidade de reforço do Estado de direito.

 

Escreve à terça-feira