A Procuradoria Geral da República (PGR) já terá apresentado ao Ministério da Defesa uma participação disciplinar a respeito da atuação da Polícia Judiciária Militar na interceção do armamento dos Paióis Nacionais de Tancos, recuperados na madrugada de quarta-feira na Chamusca, garantiu ao SOL fonte conhecedora do processo.
Questionada pelo SOL, a PGR não confirmou a queixa, dizendo que «nada mais tinha a acrescentar à informação já prestada». Ou seja, que o inquérito – que ainda não tem arguidos constituídos e se encontra em segredo de justiça –, é dirigido pelo Ministério Público (MP) , coadjuvado pela Unidade Nacional Contra Terrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária, e (apenas) com a colaboração da Polícia Judiciária Militar. Já o Ministério da Defesa não respondeu à questão enviada pelo SOL.
A Polícia Judiciária não terá ficado satisfeita por não ter sido imediatamente informada da descoberta do material furtado e quer agora garantias de que a intervenção da PJM na recolha das armas não prejudica de alguma forma a investigação. Já as fontes militares ouvidas pelo SOL desvalorizam esta postura, afirmando que uma vez que a denúncia lhes chegou diretamente, apenas seguiram o quadro de atuação normal. «Não é só a PJ que sabe dirigir as investigações», chegou a ironizar uma fonte.
As quezílias entre a Polícia Judiciária Militar (PJM) e o Ministério Público, que ficaram especialmente expostas esta semana, não são, no entanto, uma novidade. Esta é uma guerra antiga que, com o passar dos anos, se tem acentuado.
Fontes ouvidas pelo SOL explicam que desde o tempo em que foram extintos os Tribunais Militares que foi mostrada vontade em terminar também com este órgão. No entanto, a PJM não só tem sobrevivido como tem até conseguido algumas conquistas que contribuem para a sua autonomia. Por exemplo, anteriormente, quando a PJM recolhia indícios durante as investigações, os materiais eram enviados para os laboratórios científicos da PJ, dado que os militares não possuíam meios para o fazer. Mas desde 2004 que a PJM dispõe deste tipo de instalações – um laboratório que continua em crescimento, mas que permite aos militares processarem os indícios que recolhem nas suas operações sem pedir a intervenção do Ministério Público.
A Polícia Judiciária Militar, agora debaixo de fogo, é constituída por cerca de cem militares de carreira que frequentaram a escola da Judiciária. É um órgão da Polícia Criminal que atua no âmbito dos crimes estritamente militares e que depende do Ministério da Defesa, embora a dependência seja mais administrativa do que o propriamente executiva. Para os militares, o assalto a Tancos «é um crime essencialmente militar» pelo que, e desde o início, – e apesar de ser o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) a liderar a investigação – o encararam e investigaram como tal. E foi o que fizeram esta semana quando, na madrugada de quarta-feira, receberam uma estranha chamada.
A estranha denúncia
Na madrugada quarta-feira, por volta das 3h00, chovia copiosamente na Chamusca, a cerca de 20 km do Paiol Nacional de Tancos. Em Lisboa, o piquete de serviço da Polícia Judiciária Militar – coincidentemente, um major destacado para investigar o caso de Tancos – recebe um telefonema anónimo. O número era visível no ecrã e, logo após a chamada, foi desligado. Do outro lado, um homem começa a dar indicações «precisas» sobre o local onde teria sido despejado o material roubado. Primeiro, o major ainda pensou que estava a ser alvo de uma brincadeira, uma vez que as instruções foram deixadas «como se fosse um mapa ao tesouro», adianta a mesma fonte, explicando que, no terreno, foi bastante fácil seguir as pistas dadas pelo interlocutor.
E foi assim que, ainda nessa madrugada, a PJM se depara com a quase totalidade do armamento subtraído no final de junho em Tancos – à exceção das munições de 9 mm – junto da ponte que liga a Chamusca à Golegã, numa zona baldia perto de uma ribeira. «As caixas estavam intactas, só duas ou três tinham sido abertas», revela.
Após a interceção, e dado o tipo de material em causa, a PJM chamou ao local a Equipa de Inativação de Explosivos (EID) do Exército. No local esteve também um destacamento da GNR de Loulé que já se encontrava na zona e que acabou por dar apoio à operação.
Quando a UNTC da PJ chegou ao local, o material já estava depositado no Paiol Nacional de Santa Margarida, que se encontra também na mesma área geográfica. Embora seja o Exército o fiel depositário das armas, o material só poderá ser processado após autorização do DCIAP, que continua ao leme da investigação.
Nessa tarde, foi convocada uma reunião de emergência pelo DCIAP para discutir a atuação da PJM_na investigação.
Dois militares identificados
Ainda não há arguidos neste processo, mas o SOL sabe que há dois militares identificados no caso do assalto dos Paióis Nacionais de Tancos que estavam a ser monitorizados desde o roubo dos armas. Um dos dois militares investigado presta serviço no Regimento de Engenharia 1, também em Tancos – uma das três unidades responsáveis pelas rondas de segurança do Paiol Nacional de Tancos e que teria, portanto, um conhecimento profundo do funcionamento e das fragilidades do local.
Terá sido através desses militares que a Polícia Judiciária Militar começou a apertar o cerco aos assaltantes nas últimas duas semanas – não tendo, contudo, chegado à ‘cúpula’, ou seja, aos mandatários e, provavelmente, autores materiais do crime. Terão também sido estes militares a coagir os alegados assaltantes, que conheciam, a devolver as armas.
Ao que o SOL sabe, as munições de 9 mm terão sido o verdadeiro alvo do roubo. O restante material de guerra – o que preocupava, verdadeiramente, as autoridades dado o seu grau destrutivo – terá sido levado por uma questão de oportunidade e foi todo recuperado intacto.
E era precisamente este o material que poderia render mais dinheiro aos assaltantes no mercado negro. Após o roubo, o chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), general Pina Monteiro, referiu que as armas poderiam estar obsoletas – afirmação que clarificou depois no Parlamento, na comissão de Defesa. «Referi, exclusivamente, que os lança-granadas foguete LAW provavelmente não estavam em condições de serem utilizados com eficácia, mas tenho que reconhecer que depois disso todas as intervenções públicas que ouvi de várias matizes fizeram o serviço de tornar obsoleto todo o material, o que não é verdade», sublinhou. Ou seja, a esmagadora maioria do material não só estava ativo como era extremamente perigoso – nomeadamente os explosivos plásticos PE-4A.
Segundo uma fonte conhecedora do processo ouvida pelo SOL, estes explosivos, os que mais preocupavam as autoridades em matéria de possíveis ataques terroristas, constituíam o material «topo-de-gama» furtado de Tancos. No total, e segundo a lista publicada pelo El Español, foram subtraídas 264 unidades destes explosivos, que têm uma capacidade de explosão avassaladora, capaz de deitar abaixo um edifício. E entre o armamento deixado à beira da ribeira da Chamusca havia armas que poderiam fazer cair um avião.
Com a ‘devolução’ do armamento de Tancos, está assim praticamente afastada a tese de que o material tinha sido subtraído com o intuito de ser utilizado num ataque terrorista.
As pistas indicam, aliás, que este foi um «trabalho amador» e que é possível que o material nunca tenha abandonado o perímetro geográfico ribatejano.
O ministro da Defesa, Azeredo Lopes, foi chamado com caráter de urgência pelo PS logo na quarta-feira. Recorde-se que no mês passado, em entrevista à TSF, Azeredo Lopes prestou declarações polémicas sobre o caso, ao afirmar que «no limite» poderia «não ter havido furto». No limite, houve mesmo.