Uma miúda na estrada. Diário da Tour Cancro com Humor #2


Nunca sei qual será a reação a esta partilha e de que forma poderei, ou não, tocar os corações de quem está presente. Cada apresentação do livro, cada palestra, cada partilha é sempre uma incógnita


Da última vez que vos escrevi estava sentada numa pão de forma de 74 enquanto conduzíamos a caminho de Lisboa, já em silêncio, porque o Tiago ainda recuperava do susto de a carrinha ter avariado. Mas a pão de forma mais bonita que vi jamais nos deixaria mal. Foi só um sustinho para abrilhantar a viagem – e acordar o Tiago, caso viesse com sono.

Vínhamos do Porto com o coração cheio – e a barriga – porque já tínhamos despachado durante a viagem o belo do bacalhau, impecavelmente confecionado e embalado pela nossa madrinha (pois claro que não sairia de casa sem almoço).

O destino era novo: novas pessoas, novas partilhas, e nós teríamos de voltar a dar o nosso melhor. Sabíamos que não estávamos apenas a propor que se falasse de cancro – estávamos a propor que pais em luto, que doentes oncológicos ainda assustados, que cuidadores com o coração dorido ouvissem falar de cancro com humor. Apesar de o fazer cada vez mais com maior convicção, nunca se tornará fácil. Nunca sei qual será a reação a esta partilha e de que forma poderei, ou não, tocar os corações de quem está presente. Cada apresentação do livro, cada palestra, cada partilha é sempre uma incógnita.

Chegámos à linda Academia de Santo Amaro em Lisboa, cansados e famintos mas sobretudo nervosos, porque nunca tínhamos estado naquele espaço. As pessoas iam chegando timidamente e eu ia recebendo-as com nervosismo mas muito entusiasmo. Até que espreito pela porta para ver quem tinha acabado de chegar e vejo que ela está ali. A Inês, a mãe da minha Mafalda, que vos apresento no livro e que sei que vocês que já a conheceram através das páginas do livro são tão apaixonados por ela como eu, apareceu em Lisboa. Estava ali. E esta menina ia caindo para trás.

“A vida muda por um motivo ou outro, sempre, constantemente, impiedosamente… e felizmente. Anseio por quantas maravilhas mais vou descobrir pelo caminho. Anseio por me lembrar melhor ainda do valor dos dias e dos abraços. Anseio por aquela sensação de força suprema depois de uma cirurgia mais dura. Anseio por relembrar que morte e vida querem dizer a mesma coisa. Anseio pela primeira quimioterapia, para lembrar o sorriso às pessoas à minha volta. Anseio por perder o meu cabelo todo e tornar evidente a todos quantos quiserem ver e olhar e comentar e apreciar e encorajar o quão preciosas são as nossas vidas, a minha e a deles.” (excerto do primeiro email que a Mafalda me enviou. Página 104 do livro “Cancro com Humor 2”).

Ver a Inês foi ter a Mafalda comigo e ter a Mafalda comigo foi dos melhores presentes que poderia ter tido. Por isso, com a ajuda da Adelaide, a presidente da Associação Pais Heróis, que tem das histórias de vida mais inspiradoras e duras do mundo, decidimos espontaneamente que naquele dia falaríamos de amor e de fé. Tinha comigo duas mulheres que perderam as suas filhas, e ouvir a Adelaide e ver a Inês deu um sentido diferente a esta tour. Senti amor na dor maior, senti aprendizagem e gratidão, senti estas mães, para sempre mães, a mostrarem-nos como o amor pode curar um coração partido. Senti-me uma sortuda por poder aprender.

No outro dia estaria na Associação Terra dos Sonhos, ainda em Lisboa. Não poderia sair de Lisboa sem passar nesta casa mágica. Foi dentro destas portas que, em 2015, recebi a notícia para que viesse a correr para o IPO. Era preciso despedir-me do meu Careca Power. Era preciso que nos olhássemos e falássemos pela última vez. E, a correr da Terra dos Sonhos, saí sem olhar para trás, saí do sonho para o IPO, onde me era pedido que fosse mais forte do que nunca. Saí com a certeza que um dia haveria de ali voltar outra vez, inteira.

Voltei. Voltei dois anos depois, com o livro “Cancro com Humor” nas mãos. Desta vez, éramos poucos. A família da Mafalda apareceu novamente, e esta apresentação atípica transformou-se num círculo de amigos que decidiram falar de morte e de vida e de amor. Digo-vos que alguma coisa aconteceu ali. Sentimos que fizemos algum tipo de terapia. Chorámos e rimos sem vergonha e aumentei a certeza de que tudo, absolutamente tudo, fazia sentido na minha vida.

Foi com todas estas emoções em bruto que partimos para o Alentejo. Confesso–vos que estávamos exaustos e a precisar de uma pausa, mas tínhamos prometido que nos faríamos à estrada. Assim foi.

Depois de um stresse imenso para conseguirmos sair de Lisboa.

 

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