Promiscuidade, autonomia e individualização de responsabilidades no seio do Estado


Continua a haver esquemas de gestão e decisão públicas que parecem pensados apenas para todos poderem ser responsáveis e, em rigor, ninguém poder ser responsabilizado


Continuam a ser noticiadas várias situações de alegada e aparente promiscuidade entre os interesses de empresas fornecedoras de vários serviços da administração pública e municipal e de alguns dos seus responsáveis.

A discussão deste problema tem-se centrado – como sempre – em aspetos de natureza jurídica e ética.

Claro está que o deslindamento dos casos disciplinares e processos crimes que tais notícias poderão eventualmente ocasionar não poderá olvidar, obviamente, problemas jurídicos tão complexos como o da consciência da possível ilicitude das condutas e o da culpa dos que nelas se viram envolvidos.

Já sabemos que tal tipo de discussões ocasionará, também, longos comentários – com mais ou menos expressão mediática – sobre a eficiência e efetividade da Justiça, e sobre a necessidade de, a título preventivo, melhor configurar códigos de ética.

Falar-se-á da indefinição das leis, da falta de meios para a investigação, dos prazos dos processos, das incompatibilidades legais na assunção de determinados cargos públicos e empregos privados; enfim, do costume.

E, no entanto, no âmbito de um sistema político-económico como aquele em que vivemos na União Europeia, a maneira de melhor ir prevenindo o alastramento de comportamentos lesivos do interesse público e do bem comum é tornar efetivo, e por isso tempestivo, o controlo da qualidade técnica dos projetos, da sua necessidade e economicidade, bem como da sua legalidade financeira, entendida esta em toda a sua amplitude.

Podemos, é certo, punir a posteriori delitos relacionados com projetos injustificáveis na perspectiva do interesse público e procurar – mesmo que a experiência ensine que só como muita dificuldade isso é possível – ressarcir o erário público dos prejuízos causados.

Em rigor, porém, todas essas intervenções resultantes de controlos sucessivos de diversa natureza – política, judicial e administrativa – estão condicionadas por uma miríade de pressupostos jurídicos e dificuldades técnicas que lhes tolhem a efetividade.

É verdade, também, que a introdução de filtros demasiado apertados e necessariamente burocráticos, para procurar condicionar as más decisões, podem – eles mesmos, em consequência – propiciar que o seu uso seja direcionado para fins diferentes dos que estavam previstos.

Temo, contudo, que, também como de costume, a questão política essencial da profissionalização das administrações e designadamente das chefias e quadros superiores que servem o Estado, da transparência e simplicidade dos processos e instâncias de decisão, e seu efetivo controlo financeiro e técnico, continuem a não merecer grande relevância noticiosa.

E, no entanto, tratando-se na aparência somente de questões técnico-financeiras, elas estão relacionadas também com opções políticas de fundo: saber e conseguir distinguir estes planos é absolutamente relevante.

Só caminhando nesse sentido, avançaremos para uma mais rigorosa individualização e responsabilização dos distintos e efetivos decisores económicos e financeiros que agem no seio – e em nome – das administrações do Estado.

Competência técnico-profissional e responsabilização estão também relacionadas com a autonomia e individualização da decisão e dos decisores.

Hoje, infelizmente, continuam a existir entre nós esquemas de governação pública que disseminam responsabilidades, disfarçam os verdadeiros decisores e dificultam, assim, o apuramento e a concretização de responsabilidades.

Continua a haver esquemas de gestão e decisão no seio das administrações públicas que parecem pensados apenas para todos poderem ser responsáveis e, assim, ninguém poder, em rigor, ser responsabilizado.

Jurista

Escreve à terça-feira