O Advento da Terapia Génica

O Advento da Terapia Génica


A terapia destina-se a combater a leucemia linfoblástica aguda em crianças e jovens que não respondem à terapia convencional. As revistas da especialidade e os media têm sido unânimes em destacar a nova terapia como um marco científico extraordinário


A agência reguladora americana dos alimentos e medicamentos (FDA) aprovou a primeira terapia génica nos EUA no passado mês de Agosto. Desenvolvida pela farmacêutica Novartis e designada por Kymriah, a terapia destina-se a combater a leucemia linfoblástica aguda em crianças e jovens que não respondem à terapia convencional. As revistas da especialidade e os media têm sido unânimes em destacar a nova terapia como um marco científico extraordinário. O entusiasmo justifica-se pelos excelentes resultados obtidos em ensaio clínico (83% de remissão num universo de 63 pacientes após 3 meses) e pela antevisão de que terapias equivalentes possam ser usada noutros tipos de tumores. Por outro lado, destaca-se a natureza revolucionária da abordagem seguida e dos agentes terapêuticos utilizados, que são radicalmente diferentes dos medicamentos injectáveis comuns.

A terapia em questão utiliza células do sistema imunitário do paciente (linfócitos T) que foram modificadas de modo a exibirem na sua superfície uma proteína quimérica (CAR). Equipadas com esta proteína (parte de rato e parte humana), as células CAR-T passam a reconhecer e promover a eliminação das células cancerosas. A modificação das células T em células CAR-T é efectuada introduzindo nas células o gene que contém a informação necessária à síntese da proteína CAR. Este processo recorre a vírus geneticamente alterados em laboratório de modo a transportar os genes de forma eficaz até às células T. O processo é complexo, e envolve a remoção inicial das células T do paciente, o seu envio para instalações de manufactura dedicadas à modificação genética, e o seu re-envio à unidade hospitalar onde são finalmente re-introduzidas no paciente. O que o ensaio clínico referido acima mostrou foi que, contrariamente às células T originais, as células CAR-T destroem as células tumorais de forma muito eficaz. E embora possam ocorrer efeitos secundários potencialmente fatais, estes são controláveis utilizando medicação específica.

A terapia com células CAR-T geneticamente modificadas levanta pontos de reflexão interessantes. Em primeiro lugar é importante reconhecer que o resultado concreto obtido pela Novartis deriva de um esforço colectivo mais vasto da comunidade científica e da sociedade. O marco que agora se celebra é de facto a ponta de um icebergue, que assenta numa miríade de pequenos e grandes avanços científicos e tecnológicos nas áreas da biologia celular e molecular, bioquímica, oncologia e bioengenharia, entre outras. Sem esse investimento de mais de 70 anos em investigação fundamental e aplicada, o fruto que agora se colhe não teria crescido.

Destaca-se também o facto de que as células CAR-T são produzidas à medida para um dado paciente, por oposição à manufactura tradicional de medicamentos em massa, que é independente do destinatário individual final. Sendo potencialmente mais eficaz, este tipo de medicina personalizada não permite no entanto as economias de escala características da indústria farmacêutica tradicional.

Incontornáveis são ainda as questões de acesso e custo da nova terapia. Aqui, o custo de cerca de 400 mil euros (fora custos de hospitalização e de medicamentos necessários para debelar efeitos secundários) proposto pela Novartis afigura-se à primeira vista irrazoável. Algumas instituições consideram no entanto que o preço é justo face ao potencial curativo da terapia e consequentes ganhos em termos de anos de vida e de tratamentos poupados.

É também interessante assinalar que, formalmente e para todos os efeitos, os pacientes tratados com as células CAR-T podem ser enquadrados na categoria de organismos geneticamente modificados (OGM). Mais ainda, e no caso em concreto, serão também organismos transgénicos já que parte da sequência do gene da proteína quimérica CAR que circula nos seus corpos é de rato. Será esta uma questão importante do ponto de vista ético, religioso ou político, ou essencialmente irrelevante num contexto em que se procuram curas para doenças fatais?

 

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