O lado menos bonito do Camboja


A semana passada foi detido no Camboja um holandês por abuso sexual repetido de uma menina de seis anos, outro holandês aguarda julgamento por ter torturado um menino de dois anos e publicado vídeos no Facebook com a criança vendada, nua e a ser vítima de abuso


Olhar para o país que é o Camboja pressupõe um descompasso entre as interpretações sobre o que é a realidade. Há o Camboja dos filmes de Hollywood, de Angkor Wat, de cortar a respiração perante o esplendor de pedra, e o Camboja que não vem em nenhum mapa.

Não foi uma fatalidade que encarcerou aquelas crianças. Foi o terem nascido no lado errado da vida. Há coisas terrivelmente simples: as mais pobres de entre as crianças são as mais vulneráveis. Os orfanatos cambojanos – alguns cujas condições nem Charles Dickens conseguiria descrever com justeza – estão cheios de crianças não órfãs; recentemente, 3500 foram devolvidas às famílias. Há em todo o país mais de meio milhão de crianças que vivem sem cuidados parentais. A semana passada foi detido um homem holandês por abuso sexual repetido de uma menina de seis anos, outro holandês aguarda julgamento por ter torturado um menino de dois anos e publicado vídeos no Facebook com a criança vendada, nua e a ser vítima de abuso. Continua, apesar do muito que está a ser feito, um dos país mais perigosos do mundo para se ser criança.

Cresci a escutar histórias das mães negras na senzala que amamentavam os bebés das colonas. Pensei que essa prática tivesse desaparecido com o fim dos colonialismos. Não desapareceu. Até março deste ano, mães cambojanas – este é um dos países mais pobres do Sudeste asiático – vendiam o seu leite a um laboratório que o exportava para os Estados Unidos. Cada embalagem de 147 ml custava a uma mãe norte-americana 20 dólares. Ao venderem o leite materno, o que foi entretanto proibido, as mães khmer deixavam de alimentar os seus próprios bebés. No Camboja, muitos bebés sofrem de má nutrição e a amamentação durante os primeiros seis meses de vida “passou de 75 por cento em 2010 para 65 por cento em 2014”, explica Débora Comini, representante da UNICEF no país.

Trabalhar longas horas com temperaturas superiores a 37 graus é comum nas fábricas da Puma, da Nike e da Asics no Camboja. Nos últimos meses, milhares de mulheres desmaiaram de calor ou de exaustão. “As condições são semelhantes às das fábricas europeias do século xix” – denúncia feita pela Danwatch, um grupo investigativo de media. O salário pago às mulheres na indústria têxtil – cujo volume de negócios era de 5,7 mil milhões de dólares em 2015 – situa-se em cerca de 150 euros, metade do valor que é considerado um “living wage”. “Não há investimento para adequar as condições quer de trabalho, quer salariais”, afirma Bent Gehrt, da Worker Rights Consortium. Há pouco tempo, uma empresa que fabrica calçado para a Asics teve de encerrar temporariamente porque, num período de três dias, 360 trabalhadoras desmaiaram.

Em 2011, a ecologista e jornalista Lucy Siegle publicou “To Die For: Is Fashion Wearing Out the World?”, um livro extraordinário, resultado de uma investigação profunda sobre os bastidores do mundo da moda, que perturba. Um excerto: “O Uzbequistão é um dos maiores exportadores mundiais de algodão. Todos os anos, o governo encerra as escolas no outono e força crianças, algumas com apenas sete anos, a colher algodão.” Refere-se também a anormalmente elevada taxa de suicídio na Índia entre os trabalhadores nos campos de algodão – segundo dados da OMS, anualmente morrem entre 20 mil e 40 mil trabalhadores em todo o mundo devido aos pesticidas usados na produção de algodão – ou as costureiras obrigadas a tomar a pílula porque a maternidade atrapalharia o processo produtivo.

A nossa t-shirt barata ou os nossos ténis têm um preço demasiado elevado: o abandono dos riscados do mundo. Depois de ler Lucy Siegle, pensarei duas vezes antes de me precipitar para algo de que não necessito de facto.

 

Escreve à segunda-feira