Maus ventos em França


Graças a um sistema eleitoral iníquo e injusto, Macron ficou à beira dos plenos poderes, apoiado por um partido ultramaioritário no parlamento que é minoritário na opinião pública


Tal como a abstenção eleitoral, que bateu novo recorde, também a moralização e a renovação da política são fustigadas por maus ventos em França. Nada menos do que 57,4% dos eleitores foram “à pesca” em vez de irem votar na 2.a volta das eleições legislativas. Várias demissões de ministros suspeitos de corrupção, sobretudo a de François Bayrou, presidente do MoDem e principal aliado do La République en Marche!, obrigaram o presidente Macron a nomear segundo governo em menos de um mês. O “macronismo” está a deambular na paisagem como um frango sem cabeça, com as suas promessas de “moralização” a desmoronar-se logo à partida, sem que se saiba, em bom rigor, quais são o conteúdo e os objectivos políticos desta novíssima maioria sem cor nem alma.

Não é só o antiquíssimo Bayrou que está na berlinda. Também o juvenil Macron está a ser alvo de um inquérito preliminar por suspeita de “favoritismo” na atribuição, sem concurso público, da organização de um evento, na sequência de uma viagem que fez a Las Vegas quando era ministro da Economia de François Hollande e Manuel Valls. Mais: duas dezenas de sociedades de jornalistas já se manifestaram alarmadas com os “sinais extremamente preocupantes” enviados pelo governo em matéria de “independência dos media” e de “protecção das fontes”, denunciando “tentativas de pressão, repressão judiciária e processos de intenção”. Afinal, a novíssima maioria é tão velha e politicamente mais oca do que as anteriores. “Chassez le naturel, il revient au galop.”

O mais preocupante em França é, porém, a perversidade de um sistema eleitoral que transforma o inquilino do Palácio do Eliseu num hiperpresidente da República, “dotado de poderes exorbitantes que esmagam os poderes da Assembleia Nacional e mesmo os do governo”. Como já afirmou um antigo primeiro-ministro, Jean–Pierre Raffarin, “a eleição presidencial devora as legislativas” e pode dizer-se que, na prática, “o presidente nomeia os deputados”. E o certo é que, com apenas 32% dos votos, ou seja, tão-só 15% dos eleitores inscritos, os partidos da aliança entre Macron e Bayrou obtiveram quase 65% dos 577 deputados à Assembleia Nacional. Alcançaram uma folgada maioria absoluta: mais 62 deputados do que a soma dos outros partidos (centro-direita, centro- -esquerda, esquerda radical e extrema- -direita). Significa isto que o presidente Macron ficou à beira dos plenos poderes, apoiado por um partido ultramaioritário no parlamento que é claramente minoritário na opinião pública. Graças a um sistema eleitoral iníquo e injusto, que não prevê qualquer forma de representação proporcional, o que prevalece é uma democracia sem o povo – como já sucedera em 1981, beneficiando o PSF, e em 1993, beneficiando a aliança de direita RPR-UDF.

Recorrendo a uma curiosa frase que Francisco Louçã aplicou ao parlamento português em 2000, vemos hoje sentada na nova Assembleia Nacional francesa “uma República triste e apinocada, vazia mas coquete, sem ideias mas cheia de pose”. Uma República na qual os principais partidos são estados-maiores quase sem tropas, secções sem militantes, pequenos grupos de notáveis locais, punhados de políticos profissionais ou semiprofissionais cada vez mais distantes dos seus próprios eleitores, quase sempre mergulhados no nevoeiro do “centrão”. Uma República na qual as opções políticas raramente são claras e os objectivos são vagos e imprecisos, porque é vital captar os apoios dos tíbios, dos flutuantes, dos medíocres e dos oportunistas. Por isso, convém não fazer ondas. Criticando as ambiguidades e delírios do inefável político Emmanuel Macron, uma jovem francesa escreveu, numa revista de direita, ser um erro pensar que ele encarna a renovação e a mudança, porque o novo Presidente francês é apenas “o primeiro dos populistas pós-modernos”.

Se ainda fosse preciso demonstrar a excelência do sistema eleitoral de representação proporcional que vigora em Portugal – e mesmo do sistema político consagrado na Constituição da República – estes exemplos tão nefastos para a democracia que nos chegam de França seriam mais do que suficientes. O sistema político consagrado na Constituição de 1976 – sistema semipresidencial, também chamado sistema misto parlamentar-presidencial – é bastante flexível e suficientemente elástico para acolher várias soluções governativas, possibilitando uma evolução positiva do nosso regime democrático no sentido de uma estabilidade política cada vez maior dos executivos. Por outro lado, o nosso sistema de representação proporcional conseguiu evitar a bipartidarização do regime, permitindo que movimentos e partidos políticos minoritários se exprimam politicamente, no quadro institucional, em vez de os empurrar para fórmulas de oposição extraparlamentares. Sou dos que continuam a pensar que os deputados à Assembleia Constituinte deliberaram sábia e avisadamente ao optarem pelo sistema político e eleitoral que continua a reger-nos 40 anos depois.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990