Indiferença e ideias feitas


Do meio de toda aquela multidão de pessoas “normais”, de “bons pais e mães de família”, saem dois arrumadores de automóveis, daqueles que já foram ou são viciados nalguma substância, daqueles que não têm “bom aspeto”, e são eles os únicos que generosamente fazem alguma coisa


É fim de tarde em Lisboa, num local onde turistas e locais fazem uma multidão. Dois automóveis chocam frontalmente, e alguns percebem logo que não foi acidente e que um, propositadamente, abalroou o outro. Mas mesmo para quem estava distraído, depois é fácil perceber que aquela não é uma situação acidental, trata-se pelo menos de agressão, ou até talvez algo mais. O condutor que propositadamente lançou o seu automóvel sai, visivelmente alterado, e tenta entrar no outro. O condutor abalroado fecha- -se por dentro, e aquele grita, insulta, bate no vidro, atira tudo o que apanha à mão, tenta partir uma das janelas. Estilhaça um vidro mas não consegue quebrá-lo, força a porta mas não consegue entrar. O que está trancado por dentro gesticula e grita por socorro, duas vezes abre a janela do lado contrário e pede que chamem a polícia. Passa o tempo, tudo dura talvez 20 minutos – dentro do automóvel trancado por dentro parecerá uma eternidade.

A multidão deixa-se estar, junta-se mais gente. E ninguém faz nada. Há quem apenas fique a ver, há quem solte um grito de medo, há caras de espanto, alguns abanam a cabeça reprovadoramente, há um ou outro olhar de contentamento pelo espetáculo inesperado. Ninguém acode, ninguém chama sequer a polícia – que acaba por vir, mas chamada pelo que se fechou dentro do automóvel. E essa polícia, aliás, tem um comportamento irrepreensível, firme, sensato, respeitoso, sensível. E cai a primeira ideia feita que tantas vezes se ouve ou lê, a de que a polícia não sabe lidar com estas situações, que não faz o seu papel, que não está preparada, que não sabe agir firme mas sensatamente, que não tem equilíbrio e proporção. Nada disso, neste caso, pelo menos, o contrário disso, um comportamento a merecer todas as estrelas que haja para classificar a conduta policial.

Mas antes de a polícia chegar dá-se a queda de outra ideia feita – esta mais arreigada, generalizada e estigmatizante. Pois a verdade é que, do meio de toda aquela multidão de pessoas “normais”, de “bons pais e mães de família”, saem dois arrumadores de automóveis, daqueles que já foram ou são viciados nalguma substância, daqueles que não têm “bom aspeto”, daqueles que tantas vezes evitamos ou ignoramos, que provavelmente dormem numa soleira de porta ou num banco de jardim – um rapaz e uma rapariga. E são eles os únicos que generosamente fazem alguma coisa, que tentam chamar à razão o condutor enlouquecido. A rapariga, no seu curto metro e meio de altura, afasta-o do automóvel, interpõe-se entre ele e o vidro e a porta que ele tenta partir e forçar e grita-lhe: “Pare com essa m…, o homem não é um cão.” Aquela arrumadora, a que – quando não viramos a cara – alguns de nós talvez deem uma moeda a contragosto, parece ser a única a saber que um homem não é um cão. E parece ser a única a saber o que é a indiferença (de que o narrador também é culpado), e a reagir, talvez porque seja muitas vezes vítima dela e saiba bem como pode ser insuportável.

 

Escreve à sexta-feira