Sobre o decoro na coisa pública


Portugal nomeou como representante na quota do parlamento, para o órgão de tutela dos tribunais administrativos e fiscais, um deputado que é cadastrado


Portugal – a tal democracia europeia que entretanto acordou no país das maravilhas e onde as políticas salvíficas dos mesmos obreiros da recente bancarrota agora celebram os tempos do mundo novo, aquela onde as causas e os efeitos do resgate da República sucumbiram à pós-verdade – nomeou como representante na quota do parlamento, para o órgão de tutela dos tribunais administrativos e fiscais (ou seja, para avaliador do desempenho e decisor das questões disciplinares dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais), um deputado que é cadastrado.

Com excepção do facto de ter sido condenado na prática de um crime contra a liberdade de informação enquanto deputado – o que, na qualidade de eleitor obrigado a uma organização política capturada pelos partidos políticos e suas juventudes, clientelas e processos internos de nomeação de elegíveis para os círculos plurinominais, me parece profundamente censurável, além de pernicioso para a percepção externa da política e dos políticos –, nada estritamente pessoal me move contra o dr. Ricardo Rodrigues.

Parece ser, por estes dias, relativamente desinteressante que o crime pelo qual o dr. Rodrigues foi acusado e condenado, e cuja sentença o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, tenha sido praticado em plena Assembleia da República enquanto o sr. deputado da nação posava majestaticamente na biblioteca, em postura de grande eminência do regime que dá entrevista de carreira.

No entanto, essa referida condenação e os seus contornos, como parece ter escapado a quem o nomeou – o que não aconteceu, imagine-se, com os representantes de classe dos futuros sujeitos à tutela do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais –, causou, ao que parece, em algumas das cada vez menos partes atentas deste lugar, natural e justificado receio ou admiração.

Já aqueles que de alguma forma teimam em acreditar nas instituições (contra todas estas evidências), quero crer que lhes terá causado sensações que oscilam entre o embaraço (severo) e a vergonha alheia.

A referida mancha curricular, convém notar, adveio do facto de o sr. deputado Ricardo Rodrigues ter atentado contra a liberdade de imprensa, pilar absolutamente fundamental de um Estado de direito que almeje ser mais que o tal “sítio mal frequentado” a que nos condenam impenitentemente com estas paródias vagamente ressocializantes.

Reagia o sr. deputado arguido, segundo resulta do acórdão, a perguntas que entendeu como um ataque à sua honra e que se referiam, pelo menos, a um processo em que constituiu estruturas offshore para uma cliente e que têm relação com um caso de fraude de milhões de euros (ainda que, depois de as ter constituído, se apresentou no parlamento como o paladino da luta contra elas), e também por uma referência ao denominado processo da “garagem do Farfalha”.

É, pois, independentemente da materialidade das várias suspeitas, da teoria geral da função das penas e da natural ressocialização que se espera tenha entretanto acontecido, no caso concreto, também este o track-record do senhor futuro membro do órgão de fiscalização e disciplina dos senhores juízes e juízas dos tribunais administrativos e fiscais.

Já não valerá a pena sequer analisar esta nomeação na perspectiva de que este membro do Conselho, poderá, em abstracto, avaliar ou exercer a acção disciplinar sobre os juízes que podem ser chamados a julgar os seus actos administrativos como autarca, como o senhor representante da associação dos juízes, e bem, apontou.

A questão é muito mais prosaica que isso. Será ajuizado, prudente, sério, lúcido, inteligente ou compreensível (para além da lógica do opaco funcionamento das estruturas partidárias e demais estruturas clientelares afins) que se eleja para o órgão que, entre outros, julga disciplinarmente e classifica a magistratura administrativa e fiscal, um deputado cadastrado por crime exercido quando no âmbito das suas funções e no seu local de trabalho?

Que espécie de imagem é que isto dá das funções, do órgão e dos supervisionados? Que espécie de respeito (independentemente do rigor técnico da decisão ou avaliação) terá um juiz – sujeito a uma teia de responsabilidades e condutas altamente restritiva – pelas decisões sufragadas por quem não vive, nem aparentemente acredita sequer, em deveres éticos básicos, e menos ainda nos de reserva e recato que estes têm de professar? Que mente tortuosa acha isto normal? E que espírito alienado se amputa da necessária autocrítica e o aceita?

A ideia desta nomeação, no país que Portugal foi mas vai deixando de ser – à medida que se aproxima a velocidade estonteante, e afectuosa, do final da sua revolução bolivariana –, teria sido mote para a censura pública generalizada nas legislaturas anteriores, que se indignavam com simples currículos académicos.

A verdade, porém, é que, aconchegados no fundo do bolso onde António Costa os tem (e nunca pensei dizer isto sem ser a rir), Bloco de Esquerda e PCP – e até a moribunda, se restar alguma, facção democrática e com capacidade autocrítica do PS – assistem, coniventes e cúmplices com este caminho para a implosão do regime, deixando saudades, imaginem, dos antigos “esganiços” ou da costumada cassete.

A esquerda antes vigilante aburguesou-se, condescendeu, silenciou e vive agora em estado catatónico à procura de perceber o que lhe aconteceu.

Neste apregoado novo tempo, a espuma dos dias já tudo perdoa à mulher de César: o decoro sucumbiu à pós-verdade.

Advogado na norma8advogados pf@norma8.pt, Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico, Escreve à quinta-feira