No país dos precários

No país dos precários


É um erro achar que uma sociedade democrática pode conviver pacificamente com tão elevados riscos de exclusão social, económica e política a que está sujeita uma cada vez maior fatia da população


O desemprego ficou abaixo dos dois dígitos pela primeira vez em oito anos, e logo Pedro Passos Coelho e Assunção Cristas fizeram o habitual número de querer aparecer numa fotografia que não é sua. O exercício requer bastante imaginação e pouca vergonha mas, em síntese, os ex-governantes reclamam que as alterações à lei laboral apadrinhadas pela troika não só estão a “produzir frutos” na descida do desemprego como, segundo Passos Coelho, permitiram ao país “ter cada vez emprego menos precário”.

De tanto quererem uma nota de rodapé nas boas notícias, já que as más tardam em aparecer, Passos e Cristas insistem em virar tudo ao contrário, a começar pela ideia de que a descida do desemprego se deve a mudanças na lei laboral e não a políticas públicas, redefinições políticas ou movimentações económicas.

Desenvolvendo o argumento na mesma linha de raciocínio, e tendo em conta que a “milagrosa” reforma laboral se resumiu à desvalorização do trabalho, à facilitação do despedimento e ao reforço de formas ligeiras de contratação, teríamos então de concluir que para Passos Coelho, o grande motor do emprego é, afinal, a precariedade.

A ideia é generosa para os patrões, e esse é o seu único mérito. O desemprego cria um exército de disponíveis que permite transformar cada posto de trabalho num verdadeiro leilão de direitos laborais em que ganha aquele que aceitar o salário mais baixo e as piores condições. Quando as condições económicas se alteram, a única forma de manter o mercado de trabalho a funcionar em regime de leilão é criar instabilidade permanente através da desregulação laboral.

A precariedade, tida como uma condição de permanente insegurança em relação ao trabalho, significa que a histórica relação entre desemprego e destruição de direitos laborais pode ser eternamente ficcionada, tendo sempre por base a chantagem da interrupção de rendimentos numa constante porta giratória entre o desemprego e o mundo do trabalho. Como disse António Saraiva, “mais vale ter trabalho precário do que desemprego”, e o digníssimo representante dos patrões na CIP nunca se engana sobre os seus interesses.

É por isso que só podemos olhar com assombro para os mais recentes números do Eurostat, segundo os quais Portugal é o terceiro país da Europa com mais trabalho temporário, só ultrapassado pela Polónia e por Espanha. Contas feitas a só um tipo de vínculo precário, os contratos a prazo abrangem 22,3% dos trabalhadores em Portugal, a que é preciso somar todo o tipo de subemprego e restantes vínculos precários como os falsos recibos verdes, falsos estágios e tantos quantos a imaginação patronal criar.

À porta da Lisnave, onde todos as manhãs se amontoam os que trabalham à jorna, nada disto é novidade, como não é nos call-centers nem nos restaurantes de Lisboa. Segundo o Livro Verde das Relações Laborais, em cada 100 postos de trabalho criados desde 2013, apenas 17 são permanentes. Para lá da idiota satisfação de Pedro Passos Coelho, há um país de precários que que sofre na pele as consequências da sua maldita reforma laboral.

É inútil tentar convencer estes trabalhadores da bondade da sua condição, o discurso da flexisegurança já morreu há muito e os empreendedorismos de pacotilha são ilusão de perna curta. Também já não cola a tese de que a precariedade corresponde a um período experimental para os jovens que entram no mercado de trabalho. A precariedade é um projeto global para o trabalho assalariado que se vai impondo através da substituição de gerações trabalhadores em permanente downgrade de direitos e salário.

Para qualquer pessoa que não veja o mundo pelos olhos dos grandes patrões, a precariedade é uma chaga social que caminha lado a lado com o desemprego. Mais do que isso, é um erro achar que uma sociedade democrática pode conviver pacificamente com tão elevados riscos de exclusão social, económica e política que decorrerem da amputação de autonomia, emancipação e cidadania a que está sujeita uma fatia cada vez maior da população. Mas no país de Pedro Passos Coelho, isso não interessa nada.