Língua de trapos


Nas praxes parlamentares gerou-se este costume de partidos que vão rejeitar uma iniciativa de outro apresentarem projetos de resolução, sem efetividade jurídica, a fim de não ficarem mal na fotografia.


Quando a esmola é grande, o pobre desconfia. Luto há anos pela causa do português como língua internacional, um dos nossos principais recursos estratégicos. Despertou-me a atenção, faz hoje um mês, o Diário da República trazer não uma, mas duas resoluções da Assembleia da República sobre língua portuguesa. Uma, a resolução n.o 16/2017, “recomenda ao Governo uma política ativa, eficaz e global de defesa e projeção da Língua Portuguesa”. Outra, a resolução n.o 17/2017, “recomenda ao Governo medidas para a internacionalização da Língua Portuguesa e o desenvolvimento da rede do Ensino Português no Estrangeiro”. Alertado pela abundância, vi ter-me escapado, na véspera, 7 de fevereiro, a resolução n.o 15/2017, que “recomenda ao Governo que melhore o acesso aos cursos do Ensino de Português no Estrangeiro e promova a sua qualidade pedagógica”.

Deslumbrado com a paixão parlamentar, fui investigar. A prolífica produção era fruto de projetos, respetivamente, do CDS, do PSD e do PS – daí serem três. Não havendo efeméride a assinalar nem facto político aparente, estranhei a intensidade da coisa. Escavei um pouco. E verifiquei tratar-se de acontecimento mais prosaico. Por isso, não teve projeção; e apesar do vigor, “3-Resoluções-3”, ninguém glosou o acontecimento nem cavalgou uma nova política que houvesse. Os três textos serviram apenas de resposta política a projetos de lei do PCP e do BE que queriam conceder benefícios ao ensino do português no estrangeiro: eliminação de propinas, gratuitidade dos manuais, redução de alunos por turma.

Nas praxes parlamentares gerou-se este costume de partidos que vão rejeitar uma iniciativa de outro apresentarem projetos de resolução, sem efetividade jurídica, a fim de não ficarem mal na fotografia. Assim foi: os projetos de PCP e BE deram entrada em junho; o do PS, em novembro, quando o destino daqueles já estaria marcado; e os de PSD e CDS, em fim de dezembro, para balizarem o discurso em cima da hora de votar. Cumpriu-se o ritual: a 6 de janeiro foram chumbados os primeiros e aprovados os segundos que, na forma de resoluções, alcançaram em fevereiro a suprema glória do Diário da República.

O texto das resoluções é bom. O problema, infelizmente, é não poder ser levado a sério. A nossa língua terá sido usada como bola de trapos de um bate-boca parlamentar. Na democracia sem qualidade em que vivemos, é assim: as resoluções foram cancela, desvio de outras ideias.

Se estivéssemos numa democracia de qualidade, as resoluções valeriam pelo seu valor facial. Não teríamos três ao molho, mas uma que tudo condensaria. E a Assembleia estaria agora empenhada em fazer acolher e bem seguir a orientação fixada. Se estivéssemos numa democracia de qualidade, podíamos acreditar que os deputados que propuseram acreditavam e lutariam para a tornar realidade. Podíamos confiar que, ao exigir “tornar a Língua Portuguesa uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas”, velariam, ao menos, por defender o português enquanto língua oficial da União Europeia.

Só podemos ter dúvidas, para dizer o mínimo. Os três partidos que propuseram estas três resoluções bonitinhas – PSD, PS e CDS – são os mesmos três partidos comprometidos nos dois regimes europeus mais lesivos da nossa língua e seu estatuto. O BE também borrou, em parte, a pintura, no segundo desses regimes. O PCP, que eu saiba, é o único com registo sem mancha.

No fim de 1993, Bruxelas aprovou o Regulamento (CE) n.o 40/94 do Conselho, sobre a marca comunitária. Este “regime de Alicante” – assim conhecido por o organismo europeu para as marcas, Instituto de Harmonização do Mercado Interno, ter sede em Alicante – foi a primeira grande machadada europeia na nossa língua. Dispõe que “as línguas [elegíveis para o processo] são o alemão, o espanhol, o francês, o inglês e o italiano” – o português, terceira língua europeia global, não cabe dentro das cinco eleitas… Excluído! O Regulamento já foi revisto, em 2009 e 2015. Nenhum dos partidos portugueses no poder mexeu nisto.

Recentemente, houve dossiê mais sério. É uma matéria semelhante às marcas, mas pior, porque, nas patentes, a exclusão da nossa língua desqualifica-a gravemente como língua de ciência e tecnologia e desvaloriza-a no panorama das línguas globais. Em 2011 foi feita uma golpada miserável: o Conselho adotou a Decisão 2011/167/UE, para permitir, ilegalmente, uma “cooperação reforçada” na área da patente unitária, impondo um regime linguístico violador dos Tratados, sob a aparência de os não violar. Portugal votou a favor – contra si próprio. No “regime de Munique” (onde é a sede do Instituto Europeu de Patentes), as línguas consagradas são três: alemão, francês e inglês. A terceira língua europeia global não cabe nas três eleitas.

O processo seguiria: o Regulamento (UE) n.o 1257/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2012; e, assinado em Bruxelas a 19 de fevereiro de 2013, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes. Foi aprovado pela Assembleia da República em abril de 2015 e ratificado pelo Presidente da República em agosto. Votei contra; e lutei por que o Presidente deixasse o assunto para o sucessor – não havia pressa. Nada a fazer.

Em batalhas fundamentais para a nossa língua no quadro europeu, os nossos governantes não estiveram à altura – apesar dos Tratados e até contra estes. Ao dizer “governantes” abranjo governos, Presidentes da República, Assembleias da República e representações no Parlamento Europeu, à exceção de vozes minoritárias. O problema nem é tanto a Europa decidir contra nós; é nós votarmos com o resto da Europa contra nós. Isso é que mostra que não prestamos.

Decidi não continuar deputado, não me candidatar. Em 2011, o CDS batera-se valentemente contra este último atentado ao estatuto europeu da língua. Apresentámos propostas, liderámos o debate, com a companhia do PCP. Perdemos, com a razão do nosso lado, apenas porque PS e PSD se juntaram, tal como anos antes nas marcas. Formado, porém, um governo PSD/CDS e atribuídos os Negócios Estrangeiros a Paulo Portas, líder do CDS, cabendo também ao CDS os Assuntos Europeus, pensei que o dossiê seria revisto, revertido ou adiado. Não. Sem debate nem informação, a alta direção do CDS enfileirou no cortejo e fez os deputados carimbar, quando chegou o tempo do voto parlamentar.

Essa é a questão que as três novas resoluções nos colocam: são mesmo novas? São para levar a sério? Os três partidos autores tiveram um rebate de consciência portuguesa? PS, PSD e CDS vão reverter os erros feitos na União Europeia e ser plenamente consequentes com “a afirmação da nossa Língua enquanto língua de trabalho nas grandes organizações multilaterais”? Era bom.

 

Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade


Língua de trapos


Nas praxes parlamentares gerou-se este costume de partidos que vão rejeitar uma iniciativa de outro apresentarem projetos de resolução, sem efetividade jurídica, a fim de não ficarem mal na fotografia.


Quando a esmola é grande, o pobre desconfia. Luto há anos pela causa do português como língua internacional, um dos nossos principais recursos estratégicos. Despertou-me a atenção, faz hoje um mês, o Diário da República trazer não uma, mas duas resoluções da Assembleia da República sobre língua portuguesa. Uma, a resolução n.o 16/2017, “recomenda ao Governo uma política ativa, eficaz e global de defesa e projeção da Língua Portuguesa”. Outra, a resolução n.o 17/2017, “recomenda ao Governo medidas para a internacionalização da Língua Portuguesa e o desenvolvimento da rede do Ensino Português no Estrangeiro”. Alertado pela abundância, vi ter-me escapado, na véspera, 7 de fevereiro, a resolução n.o 15/2017, que “recomenda ao Governo que melhore o acesso aos cursos do Ensino de Português no Estrangeiro e promova a sua qualidade pedagógica”.

Deslumbrado com a paixão parlamentar, fui investigar. A prolífica produção era fruto de projetos, respetivamente, do CDS, do PSD e do PS – daí serem três. Não havendo efeméride a assinalar nem facto político aparente, estranhei a intensidade da coisa. Escavei um pouco. E verifiquei tratar-se de acontecimento mais prosaico. Por isso, não teve projeção; e apesar do vigor, “3-Resoluções-3”, ninguém glosou o acontecimento nem cavalgou uma nova política que houvesse. Os três textos serviram apenas de resposta política a projetos de lei do PCP e do BE que queriam conceder benefícios ao ensino do português no estrangeiro: eliminação de propinas, gratuitidade dos manuais, redução de alunos por turma.

Nas praxes parlamentares gerou-se este costume de partidos que vão rejeitar uma iniciativa de outro apresentarem projetos de resolução, sem efetividade jurídica, a fim de não ficarem mal na fotografia. Assim foi: os projetos de PCP e BE deram entrada em junho; o do PS, em novembro, quando o destino daqueles já estaria marcado; e os de PSD e CDS, em fim de dezembro, para balizarem o discurso em cima da hora de votar. Cumpriu-se o ritual: a 6 de janeiro foram chumbados os primeiros e aprovados os segundos que, na forma de resoluções, alcançaram em fevereiro a suprema glória do Diário da República.

O texto das resoluções é bom. O problema, infelizmente, é não poder ser levado a sério. A nossa língua terá sido usada como bola de trapos de um bate-boca parlamentar. Na democracia sem qualidade em que vivemos, é assim: as resoluções foram cancela, desvio de outras ideias.

Se estivéssemos numa democracia de qualidade, as resoluções valeriam pelo seu valor facial. Não teríamos três ao molho, mas uma que tudo condensaria. E a Assembleia estaria agora empenhada em fazer acolher e bem seguir a orientação fixada. Se estivéssemos numa democracia de qualidade, podíamos acreditar que os deputados que propuseram acreditavam e lutariam para a tornar realidade. Podíamos confiar que, ao exigir “tornar a Língua Portuguesa uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas”, velariam, ao menos, por defender o português enquanto língua oficial da União Europeia.

Só podemos ter dúvidas, para dizer o mínimo. Os três partidos que propuseram estas três resoluções bonitinhas – PSD, PS e CDS – são os mesmos três partidos comprometidos nos dois regimes europeus mais lesivos da nossa língua e seu estatuto. O BE também borrou, em parte, a pintura, no segundo desses regimes. O PCP, que eu saiba, é o único com registo sem mancha.

No fim de 1993, Bruxelas aprovou o Regulamento (CE) n.o 40/94 do Conselho, sobre a marca comunitária. Este “regime de Alicante” – assim conhecido por o organismo europeu para as marcas, Instituto de Harmonização do Mercado Interno, ter sede em Alicante – foi a primeira grande machadada europeia na nossa língua. Dispõe que “as línguas [elegíveis para o processo] são o alemão, o espanhol, o francês, o inglês e o italiano” – o português, terceira língua europeia global, não cabe dentro das cinco eleitas… Excluído! O Regulamento já foi revisto, em 2009 e 2015. Nenhum dos partidos portugueses no poder mexeu nisto.

Recentemente, houve dossiê mais sério. É uma matéria semelhante às marcas, mas pior, porque, nas patentes, a exclusão da nossa língua desqualifica-a gravemente como língua de ciência e tecnologia e desvaloriza-a no panorama das línguas globais. Em 2011 foi feita uma golpada miserável: o Conselho adotou a Decisão 2011/167/UE, para permitir, ilegalmente, uma “cooperação reforçada” na área da patente unitária, impondo um regime linguístico violador dos Tratados, sob a aparência de os não violar. Portugal votou a favor – contra si próprio. No “regime de Munique” (onde é a sede do Instituto Europeu de Patentes), as línguas consagradas são três: alemão, francês e inglês. A terceira língua europeia global não cabe nas três eleitas.

O processo seguiria: o Regulamento (UE) n.o 1257/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2012; e, assinado em Bruxelas a 19 de fevereiro de 2013, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes. Foi aprovado pela Assembleia da República em abril de 2015 e ratificado pelo Presidente da República em agosto. Votei contra; e lutei por que o Presidente deixasse o assunto para o sucessor – não havia pressa. Nada a fazer.

Em batalhas fundamentais para a nossa língua no quadro europeu, os nossos governantes não estiveram à altura – apesar dos Tratados e até contra estes. Ao dizer “governantes” abranjo governos, Presidentes da República, Assembleias da República e representações no Parlamento Europeu, à exceção de vozes minoritárias. O problema nem é tanto a Europa decidir contra nós; é nós votarmos com o resto da Europa contra nós. Isso é que mostra que não prestamos.

Decidi não continuar deputado, não me candidatar. Em 2011, o CDS batera-se valentemente contra este último atentado ao estatuto europeu da língua. Apresentámos propostas, liderámos o debate, com a companhia do PCP. Perdemos, com a razão do nosso lado, apenas porque PS e PSD se juntaram, tal como anos antes nas marcas. Formado, porém, um governo PSD/CDS e atribuídos os Negócios Estrangeiros a Paulo Portas, líder do CDS, cabendo também ao CDS os Assuntos Europeus, pensei que o dossiê seria revisto, revertido ou adiado. Não. Sem debate nem informação, a alta direção do CDS enfileirou no cortejo e fez os deputados carimbar, quando chegou o tempo do voto parlamentar.

Essa é a questão que as três novas resoluções nos colocam: são mesmo novas? São para levar a sério? Os três partidos autores tiveram um rebate de consciência portuguesa? PS, PSD e CDS vão reverter os erros feitos na União Europeia e ser plenamente consequentes com “a afirmação da nossa Língua enquanto língua de trabalho nas grandes organizações multilaterais”? Era bom.

 

Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade