Razões para admirar Mário Soares


Escrevo este texto enquanto sigo as imagens do cortejo fúnebre pelas ruas de Lisboa. 


Já quase tudo foi dito sobre o maior entre os maiores da política portuguesa contemporânea. E, ainda assim, é inevitável voltar a Soares por variadíssimas razões. Eu, social-democrata, em tantas circunstâncias adversário das suas ideias e crítico dos seus erros, destaco cinco razões que me fazem lembrar Soares como um titã da democracia, um combatente pela liberdade e um homem de Estado.

Primeira razão: liberdade é liberdade. Com Soares, o país percebeu que a liberdade é coisa muito diferente das “liberdades”, como bem notou Paulo Rangel. A liberdade é um valor absoluto, não subjetivo, que deve tocar integralmente todos os cidadãos. Soares, e outros de outros partidos, resgataram esse ideal de liberdade e colaram-no à pele e à alma do país numa circunstância de rutura histórica, criando as condições para que Portugal fosse uma democracia.

Segunda razão: ditadura é ditadura. Como poucos na sua área política, Mário Soares intuiu os objetivos das forças extremistas da esquerda e de alguns militares na aurora revolucionária. Os primeiros queriam substituir uma ditadura de direita por uma ditadura de esquerda guiada espiritualmente por Moscovo. Os segundos sonhariam colocar o poder civil na obediência do poder militar, reproduzindo modelos de governação típicos de outras latitudes. Mário Soares, com quem eu e tantos milhares de militantes do PPD-PSD estivemos na Fonte Luminosa, foi um muro intransponível para esses devaneios revolucionários. Mário Soares ganhou duas vezes aos projetos totalitários: em 1974, como figura de proa do 25 de Abril contra o regime de Salazar/Caetano; em novembro de 1975, garantindo que a liberdade de Abril não era usurpada pelas esquerdas radicais.

Terceira razão: o sonho comanda a vida. Guiar a transição para a democracia, pôr fim à guerra colonial e dar início à descolonização, e ancorar Portugal ao projeto de prosperidade e progresso europeu. Reconheçamos a extraordinária magnitude do projeto de que Soares foi um dos protagonistas políticos. Com ele, a política era para políticos e reinava sobre a economia e sobre a finança. Mais do que uma ambição e um sonho, o ex–Presidente da República tinha uma visão de um Portugal moderno da qual nunca abdicou. Por caminhos mais ou menos sinuosos, Soares pode ter falhado muitas vezes no acessório, mas acertou sempre no essencial.

Quarta razão: não há política sem coragem nem clivagem. Precisamente por ser um homem de convicções, e certo da sua validade, Soares nunca teve receio de decidir. Abriu combates em todas as frentes e não cultivava taticismos, mesmo quando os resultados se anunciavam desfavoráveis – afinal de contas, a liberdade democrática não incluiu apenas a possibilidade de ganhar. Isso explica que tenha gerado tantos ódios e paixões. Não era um político de meias-tintas, não deixava ninguém indiferente.

Quinta razão: a política distingue o essencial do acessório. Mesmo sendo um adversário extraordinário, Soares procurou inúmeras pontes à sua direita e secundarizou muitas vezes o seu partido em prol do superior interesse nacional. Contra o seu grupo parlamentar, forjou uma aliança com o PSD e o CDS para passar a reforma constitucional de 1982. Com o PSD, no famoso governo AD, compreendeu que só um executivo alargado poderia implementar as reformas duríssimas prescritas pelo FMI. De certa forma, Soares foi o arquiteto do “arco da governabilidade”.

Os milhares de pessoas que prestaram tributo a Soares anunciam um vazio na vida pública que será difícil de preencher. Sem Sá Carneiro, sem Amaro da Costa, sem Álvaro Cunhal, sem Mário Soares, fica a sensação de que há um tempo de idealismo e utopia que se fecha. Os quatro que mudaram o país, com um titânico combate de ideias, têm um lugar garantido na História.

Quando tanta gente se desdobra em elogios a Mário Soares, quando tantos dizem que é preciso honrar o seu legado, não deixa de ser perturbador que tão pouco daquilo que Soares nos deu esteja presente na nossa vida política.

Poucos são hoje capazes de sacrificar o seu partido pelo país. Todos contribuem para que o acessório seja essencial e para que o essencial seja acessório. Há pouca coragem para decidir, para reformar e para mudar. E há muito cinzentismo e muita indiferença para com a política. Talvez porque haja pouca força nas convicções. Talvez porque haja muita vontade de trabalhar para a popularidade instantânea nas sondagens e para o voto fácil, em vez de procurar o bem maior no longo prazo. Talvez porque haja pouco sonho e pouca ambição e pouca estratégia para o país. Talvez a liberdade ainda seja a “liberdade” de Soares. Mas as linhas vermelhas da ditadura por ele traçadas em 1975 estão hoje a ser perigosamente apagadas por alguns dos que se dizem depositários do seu legado.

Democratização, descolonização e CEE. Com este horizonte de possibilidades, Soares mobilizou o país.

Mas a nós, o que nos move hoje? Não sabemos porque perdemos o sentido de futuro em nome da satisfação do presente. Cabe às lideranças políticas redescobrir esse sentido comum, o sonho e a ambição realista, por exemplo em valores como a prosperidade económica, a justiça social ou a sustentabilidade ambiental.

Soares foi grande no nosso tempo porque lutou por todas as guerras certas. Se as lutas de hoje se resumirem à estéril disputa de fação, então estamos todos condenados a ser pequenos.

Mário Soares do 25 de Abril e do 25 de Novembro: é esse o homem que recordarei com admiração.