A comunidade que vem


A marcha dos estivadores e precários é uma junção na mesma luta de dois mundos do trabalho diferentes. Para os perceber e transformar há que reinventar o estar juntos


A semana passada marcharam, nas ruas de Lisboa, estivadores e precários. Juntaram-se no mesmo caminho dois mundos do trabalho completamente diferentes. Por um lado, aqueles e aquelas que são despedidos se engravidarem e contratados à semana e ao dia nos modernos call centers, onde tudo se faz para os sindicatos não entrarem e as pessoas são divididas numa miríade de contratos individualizados; por outro lado, 300 trabalhadores do Porto de Lisboa, sindicalizados a 100%, com ligações a sindicatos internacionais combativos, que conseguem manter condições de trabalho com dignidade num setor altamente lucrativo. Os estivadores foram alvo de repetidos ataques, sobretudo porque manifestaram a sua capacidade de lutar e de impedir a total precarização dos seus postos de trabalho. Por isso são um alvo a abater num mundo onde o trabalho recebe uma fatia cada vez menor do rendimento social e onde, pela primeira vez na história do planeta, os 1% mais ricos ganham tanto como 99% da população. A história não começou aqui e também aqui não vai acabar.

Tive a sorte de, como jornalista, entrevistar e às vezes conhecer gente a quem a vida temperou como aço mas que mantém um estranho inconformismo, como uma chama a brilhar-lhe nos olhos.

Em 2014, fazia a revolução 40 anos, falei com várias pessoas, entre as quais Jaime Serra, dirigente histórico do PCP.

A nossa conversa começou pela família. O pai de Jaime Serra morreu muito cedo, teria ele pouco mais de 10 anos. Pergunto-lhe se tem memória dele. Fala-me do pai, que nasceu no lugar do Pezinho. Conta-me que foi com a mulher e com dois filhos para Lisboa para tentarem uma vida melhor. Aqui conseguiu um trabalho de descarregador de mar. O pai era simpatizante dos anarcossindicalistas, em casa recebiam “A Batalha” e havia literatura revolucionária. Foi muito jovem que Jaime Serra começou a ler. “Com 12 anos já tinha lido o ‘Germinal’ e o ‘Trabalho’ de Zola, e tudo o que apanhava à mão”, diz. É também na infância, na companhia do pai, que se lembra de ter tido consciência dos combates e das divisões sociais em que o mundo e a sua vida estavam mergulhados.

O pai, Joaquim Eleutério, era membro da Associação de Classe dos Trabalhadores do Tráfego do Porto e de Lisboa. Participava ativamente nas greves e nas lutas. Serra lembra-se de um dia ter visto o pai enrolar um cavalo marinho à cintura e dizer-lhe: “É por causa dos amarelos [os fura-greves].”

É na sequência de uma greve prolongada que o pai de Serra se vê compelido a arranjar outro sustento. Tinha mulher e quatro filhos para alimentar. Pediu dinheiro emprestado e começou a vender, ele e toda a família, cabazes de fruta. A coisa foi crescendo, embora a fome em casa fosse tanta que, às escondidas, os filhos lhe comessem parte da mercadoria. Mas a necessidade era grande e da fruta passaram para os panos – esses, ao menos, não eram comidos. Mas a aventura comercial não teve um final feliz. Ao levar uma carroça, José Eleutério tem um acidente, é hospitalizado e morre com 41 anos, deixando mulher e quatro filhos menores.

Jaime vê-se obrigado a abandonar os estudos e a ir trabalhar. Aos 12 anos, um vizinho arranja-lhe lugar numas obras no Barreiro. Carregava tijolos e argamassa e dormia no barracão das obras. “O primeiro ano que passei foi muito rigoroso, dormia dentro de uma banheira de pedra com um pouco de palha a servir de colchão. Só mais tarde tive direito a ocupar uma tarimba”, escreve no seu livro “Eles Têm o Direito a Saber”. No estaleiro, o almoço era sempre bacalhau e batatas. Comeu durante três anos bacalhau com batatas todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Pergunto-lhe se ainda consegue comer bacalhau. Sorri-me e diz: “Gosto muito de bacalhau.”

E Serra não era caso único. Essa ânsia de se libertar e libertar os seus da escravidão que um trabalho alienado produzia era um esforço compartilhado por muitos dos seus camaradas. Dias Lourenço, outro histórico militante comunista, torneiro mecânico de profissão, contou–me o esforço que faziam nas cadeias para aprender línguas e matemáticas, e o orgulho que tinha em ter copiado na íntegra, para outros presos, um manual de Álgebra.

No seu livro “A Noite dos Proletários”, o filósofo Jacques Rancière contesta a ideia de uma identidade operária apostada em se manter tal como está e dá o exemplo de muitos operários, na primeira metade do século xix, que tinham ânsia de se apoderar do melhor da cultura do seu tempo como forma de se libertarem da sua condição de explorados. “A subversão do mundo começa àquela hora em que os trabalhadores normais deveriam desfrutar aquele sono pacífico daqueles cujo ofício não obriga, em absoluto, a pensar; por exemplo, naquela noite de outubro de 1839, às oito horas exatas, haverá uma reunião em casa do alfaiate Martin Rose para fundar um jornal de operários. O fabricante de medidas Vinçard, que compõe canções, convidou o carpinteiro Gauny cujo humor taciturno se exprime sobretudo em dísticos vingadores. O limpa-latrinas Ponty, também ele poeta, não estará lá, certamente. Esse boémio decidiu trabalhar de noite. Mas o carpinteiro poderá informá–lo dos resultados, numa das cartas que copia mais uma vez, por volta da meia–noite, depois de vários rascunhos, para lhe falar das suas infâncias destruídas e das suas vidas perdidas, das febres plebeias e das outras existências, para além da morte, que talvez comecem nesse momento mesmo: no esforço para retardar ao máximo a entrada no sono que restabelece as forças da máquina servil.”

Michel Wieviorka, no seu “Le Front National, entre Extrémisme, Populisme et Démocratie”, afirma que é errada a ideia de uma transferência direta do voto popular entre comunistas e FN. Aquilo que aconteceu é substancialmente diferente: não só muitas dessas classes populares se transformaram radicalmente como os bairros populares onde viviam os operários deixaram de existir na sua dimensão comunitária, com associações e grupos desportivos e culturais que tinham inscritas esta ideia de uma comunidade que se bate para transgredir e subverter as correntes que lhe querem impor.

Como provaram os estivadores, e muitos antes deles, as nossas condições de vida não são isoladas. Elas defendem-se e melhoram-se em comunidade. A construção de uma alternativa social mais justa passa pela reinvenção dessas comunidades que tinham o sonho de Marx e Rimbaud: transformar o mundo e mudar a vida.

Jornalista


A comunidade que vem


A marcha dos estivadores e precários é uma junção na mesma luta de dois mundos do trabalho diferentes. Para os perceber e transformar há que reinventar o estar juntos


A semana passada marcharam, nas ruas de Lisboa, estivadores e precários. Juntaram-se no mesmo caminho dois mundos do trabalho completamente diferentes. Por um lado, aqueles e aquelas que são despedidos se engravidarem e contratados à semana e ao dia nos modernos call centers, onde tudo se faz para os sindicatos não entrarem e as pessoas são divididas numa miríade de contratos individualizados; por outro lado, 300 trabalhadores do Porto de Lisboa, sindicalizados a 100%, com ligações a sindicatos internacionais combativos, que conseguem manter condições de trabalho com dignidade num setor altamente lucrativo. Os estivadores foram alvo de repetidos ataques, sobretudo porque manifestaram a sua capacidade de lutar e de impedir a total precarização dos seus postos de trabalho. Por isso são um alvo a abater num mundo onde o trabalho recebe uma fatia cada vez menor do rendimento social e onde, pela primeira vez na história do planeta, os 1% mais ricos ganham tanto como 99% da população. A história não começou aqui e também aqui não vai acabar.

Tive a sorte de, como jornalista, entrevistar e às vezes conhecer gente a quem a vida temperou como aço mas que mantém um estranho inconformismo, como uma chama a brilhar-lhe nos olhos.

Em 2014, fazia a revolução 40 anos, falei com várias pessoas, entre as quais Jaime Serra, dirigente histórico do PCP.

A nossa conversa começou pela família. O pai de Jaime Serra morreu muito cedo, teria ele pouco mais de 10 anos. Pergunto-lhe se tem memória dele. Fala-me do pai, que nasceu no lugar do Pezinho. Conta-me que foi com a mulher e com dois filhos para Lisboa para tentarem uma vida melhor. Aqui conseguiu um trabalho de descarregador de mar. O pai era simpatizante dos anarcossindicalistas, em casa recebiam “A Batalha” e havia literatura revolucionária. Foi muito jovem que Jaime Serra começou a ler. “Com 12 anos já tinha lido o ‘Germinal’ e o ‘Trabalho’ de Zola, e tudo o que apanhava à mão”, diz. É também na infância, na companhia do pai, que se lembra de ter tido consciência dos combates e das divisões sociais em que o mundo e a sua vida estavam mergulhados.

O pai, Joaquim Eleutério, era membro da Associação de Classe dos Trabalhadores do Tráfego do Porto e de Lisboa. Participava ativamente nas greves e nas lutas. Serra lembra-se de um dia ter visto o pai enrolar um cavalo marinho à cintura e dizer-lhe: “É por causa dos amarelos [os fura-greves].”

É na sequência de uma greve prolongada que o pai de Serra se vê compelido a arranjar outro sustento. Tinha mulher e quatro filhos para alimentar. Pediu dinheiro emprestado e começou a vender, ele e toda a família, cabazes de fruta. A coisa foi crescendo, embora a fome em casa fosse tanta que, às escondidas, os filhos lhe comessem parte da mercadoria. Mas a necessidade era grande e da fruta passaram para os panos – esses, ao menos, não eram comidos. Mas a aventura comercial não teve um final feliz. Ao levar uma carroça, José Eleutério tem um acidente, é hospitalizado e morre com 41 anos, deixando mulher e quatro filhos menores.

Jaime vê-se obrigado a abandonar os estudos e a ir trabalhar. Aos 12 anos, um vizinho arranja-lhe lugar numas obras no Barreiro. Carregava tijolos e argamassa e dormia no barracão das obras. “O primeiro ano que passei foi muito rigoroso, dormia dentro de uma banheira de pedra com um pouco de palha a servir de colchão. Só mais tarde tive direito a ocupar uma tarimba”, escreve no seu livro “Eles Têm o Direito a Saber”. No estaleiro, o almoço era sempre bacalhau e batatas. Comeu durante três anos bacalhau com batatas todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Pergunto-lhe se ainda consegue comer bacalhau. Sorri-me e diz: “Gosto muito de bacalhau.”

E Serra não era caso único. Essa ânsia de se libertar e libertar os seus da escravidão que um trabalho alienado produzia era um esforço compartilhado por muitos dos seus camaradas. Dias Lourenço, outro histórico militante comunista, torneiro mecânico de profissão, contou–me o esforço que faziam nas cadeias para aprender línguas e matemáticas, e o orgulho que tinha em ter copiado na íntegra, para outros presos, um manual de Álgebra.

No seu livro “A Noite dos Proletários”, o filósofo Jacques Rancière contesta a ideia de uma identidade operária apostada em se manter tal como está e dá o exemplo de muitos operários, na primeira metade do século xix, que tinham ânsia de se apoderar do melhor da cultura do seu tempo como forma de se libertarem da sua condição de explorados. “A subversão do mundo começa àquela hora em que os trabalhadores normais deveriam desfrutar aquele sono pacífico daqueles cujo ofício não obriga, em absoluto, a pensar; por exemplo, naquela noite de outubro de 1839, às oito horas exatas, haverá uma reunião em casa do alfaiate Martin Rose para fundar um jornal de operários. O fabricante de medidas Vinçard, que compõe canções, convidou o carpinteiro Gauny cujo humor taciturno se exprime sobretudo em dísticos vingadores. O limpa-latrinas Ponty, também ele poeta, não estará lá, certamente. Esse boémio decidiu trabalhar de noite. Mas o carpinteiro poderá informá–lo dos resultados, numa das cartas que copia mais uma vez, por volta da meia–noite, depois de vários rascunhos, para lhe falar das suas infâncias destruídas e das suas vidas perdidas, das febres plebeias e das outras existências, para além da morte, que talvez comecem nesse momento mesmo: no esforço para retardar ao máximo a entrada no sono que restabelece as forças da máquina servil.”

Michel Wieviorka, no seu “Le Front National, entre Extrémisme, Populisme et Démocratie”, afirma que é errada a ideia de uma transferência direta do voto popular entre comunistas e FN. Aquilo que aconteceu é substancialmente diferente: não só muitas dessas classes populares se transformaram radicalmente como os bairros populares onde viviam os operários deixaram de existir na sua dimensão comunitária, com associações e grupos desportivos e culturais que tinham inscritas esta ideia de uma comunidade que se bate para transgredir e subverter as correntes que lhe querem impor.

Como provaram os estivadores, e muitos antes deles, as nossas condições de vida não são isoladas. Elas defendem-se e melhoram-se em comunidade. A construção de uma alternativa social mais justa passa pela reinvenção dessas comunidades que tinham o sonho de Marx e Rimbaud: transformar o mundo e mudar a vida.

Jornalista