A avó veio trabalhar. Proibida a costura a menores de 60 anos

A avó veio trabalhar. Proibida a costura a menores de 60 anos


As avós deste projecto têm entre 60 e 94 anos e é das mãos delas que saem peças que misturam lavores de outros tempos com design actual.


Maria Irene traz ao peito um crachá que podia servir de legenda aos dedos que se vão cruzando num entrelaçar de lãs. “Eu é que sou a melhor bordadeira cá do sítio”, lê-se no pedaço de metal redondo e vê-se na manta que lhe está a sair das mãos. Com 73 anos, trocou as tardes passadas na casa onde vive sozinha pela companhia das avós que tomaram de assalto o número 124 da Rua do Poço dos Negros e fizeram dele o ateliê onde mostram as suas artes.

Nem todas têm netos, mas aqui são todas avós. “Eu, por exemplo, nunca tive filhos, quanto mais netos”, diz Fernanda Martins, uma das raras vezes que levanta a cabeça do pano que está a bordar. “Tem–me a mim”, responde Ângelo. “A diferença é que já não tem de me dar cinco euros para um gelado.” A gargalhada é geral, mas sempre com os olhos postos nas linhas de costura, que os bordados não se fazem sozinhos.

Ângelo Campota e Susana António são as cabeças do projecto A Avó Veio Trabalhar e apreciar uma manhã do seu trabalho é vê-los dividirem-se entre o apoio no fabrico de peças artesanais, a organização das vendas e a promoção de um projecto que faz agora um ano. A Avó Veio Trabalhar nasceu fruto de um projecto maior, a Fermenta, uma associação da qual fazem parte e que pretende usar o design como forma de inovação social. “Percebemos que o design usado de forma responsável é uma ferramenta superpoderosa”, explica Susana, a designer de equipamento encarregada de ajudar as avós a criar peças de design dignas de estar à venda. À dupla, Ângelo acrescenta a gestão motivacional com que a profissão de psicólogo o capacitou. Juntos conseguiram reunir a população sénior do eixo entre Santos e o Cais do Sodré, e agregar os lavores domésticos aprendidos noutros tempos à mente criativa de Susana. O resultado são já três colecções de peças totalmente artesanais, postas à venda na loja criada em Julho.

DO PAPEL À PRÁTICA O projecto venceu o programa BipZip, da Câmara Municipal de Lisboa, e arrancou em 2014 com um investimento de 34 mil euros e conta já com a certeza de renovação por mais um ano, com injecção de 50 mil euros.
Apesar do entusiasmo de ver a ideia aprovada, a sua concretização não foi imediata, não por falta de vontade, mas por falta de espaço físico para se instalarem. “Fomos literalmente bater à porta da Igreja de São Paulo”, conta Ângelo. Foi no centro social associado à paróquia que começaram a juntar os primeiros avós, ainda que com alguma dificuldade em transmitir a mensagem. “Ou doíam as mãos, ou a vista já não ajudava, ou já eram quatro da tarde e tinham de ir para casa. Enfim, todas as desculpas eram boas para dizer ‘não’ ao projecto”, refere Ângelo. Apesar da comodidade dos dias passados na desocupação que a reforma traz e à qual depressa se habituaram, a barreira entre a dupla de criativos e os idosos da freguesia foi rapidamente derrubada. “Começaram a criar empatia connosco e viram que só queríamos que redescobrissem as capacidades que tinham adormecidas”, refere Susana.
Os primeiros bordados fizeram recordar o crochet, as malhas e o ponto cruz, aprendidos ainda solteiras, e as 12 primeiras avós depressa perceberam que as horas passadas à frente da televisão podiam ser trocadas por algo útil. “Se inicialmente nos deparamos com uma população completamente adormecida, sentimos agora que criamos monstros em potência”, brinca Susana. Mas a verdade é que a vontade de fazer mais não pára de crescer e todos os dias chegam à loja com ideias novas e saem ainda com trabalho para acabar em casa, sem reclamações.

UM ANO A CRESCER Ao espaço que lhes foi dado no Centro Social de São Paulo juntou-se um outro nas Mercês. Ambos se mantêm abertos e a funcionar, apesar de a sede ser agora na loja do Cais do Sodré. O espaço não é grande mas alberga uma sala de costura, outra de serigrafia e uma outra onde os avós se juntam a trabalhar em torno de uma mesa comum.

Maria, Fernanda e Irene são as bordadeiras de serviço no dia da visita que o i fez ao local. Nas mãos têm a mais recente colecção, prestes a ser posta à venda. Se à terceira se dedicaram a mantas e tapetes, as luvas da primeira colecção e as almofadas da segunda foram um êxito. “Vendeu-se que foi uma maravilha”, conta Maria, que aos 80 anos não esconde o orgulho de ter visto os seus produtos serem levados por turistas. “Andam algures pelo mundo”, brinca. Irene, sentada na cadeira ao lado, partilha do orgulho e também das linhas com as quais fazem os acabamentos das mantas. Com 73 anos e alguns quilómetros a separá-la dos quatro netos e dois bisnetos, é como avó do projecto que ocupa os dias. “Faço mais do que esperava conseguir”, admite. “Há bordados que não fazia desde o tempo da mocidade.”

Susana António garante que a arte se faz exactamente desta partilha à volta de um projecto – e neste caso também de uma mesa. “No início tinha de acompanhar de perto o trabalho de cada uma, mas agora as peças saem da partilha entre o que tenho para ensinar e o que elas já me ensinaram a mim.” E depois de um ano de regresso aos lavores já têm capacidade para ocupar o lugar de professoras nos vários worskshops que vão organizando. “Garantimos 60 anos de experiência”, diz Susana, “e um avô por aluno”, completa Ângelo.

Divididos entre os centros sociais de São Paulo, Mercês e a loja do Cais do Sodré, são já 52 os avós a integrar o projecto, que será replicado em Campo de Ourique já no próximo mês. Depois disso está prevista uma viagem ao Alentejo, a compensação escolhida pelos avós em que vão dar uso ao dinheiro angariado com a venda dos seus produtos. “É uma satisfação muito grande ver alguém sair daqui com um trabalho meu comprado”, confessa José Fernando, um dos cinco avôs do projecto. Apesar de deixar os bordados para a ala feminina, é mestre na arte de fazer tapetes. “Trabalhei toda a vida nas obras, está-se mesmo a ver o jeito que eu tinha para isto ao princípio”, lembra, entre risos. Agora os dias passados na loja ajudam a não pensar “noutras chatices”, e nem os primeiros sinais de Parkinson desviam a mão do percurso certo.

Além dos bordados, dos tapetes e das luvas, aqui dá-se importância às pessoas e é por isso que cada peça vem acompanhada pela fotografia de quem a fez. “É uma injecção de ego muito importante”, refere Ângelo. Aliás, as paredes estão forradas de frases motivacionais, intercaladas com fotografias das avós e dos seus trabalhos mais elogiados. Pelo meio, um cartaz preto deixa o aviso: “Só 50? Ainda é muito nova! Volte daqui a uns anos.”