Famílias arco-íris. Mãe há só uma… ou duas

Famílias arco-íris. Mãe há só uma… ou duas


O apelo da maternidade não escolhe data ou orientação sexual. Bate à porta de qualquer pessoa, mesmo que a lei ande muitas vezes no sentido contrário.


Cristina é uma mulher de ideias fixas. “Não me lembro de alguma vez ter pensado que a minha vida seria vivida sem ter crianças”, confidencia-nos. Aos 12 anos, quando a maioria das meninas sonha com príncipes e princesas, Cristina Nunes já sabia bem para o que nascera: ser mãe. O apelo da maternidade surgiu muito antes da descoberta da orientação sexual. Essa convicção “chegou muito mais tarde, com 21, 22 anos”, conta, hoje com 38.

Assumindo-se como homossexual, sabia que em Portugal não era possível concretizar o sonho da maternidade. “Recorri à inseminação artificial, em Espanha, e nasceu aqui a princesa Ana”, relata--nos de sorriso rasgado a apontar para  o rebento de quatro anos. Apesar dos obstáculos e dos custos que enfrentou para ser mãe, Cristina Nunes assegura que “foi tudo muito simples”: “Por mais estranho que possa parecer, foi das coisas mais simples que fiz.” 

Ao contrário do que acontece com a maioria das mulheres que decidem recorrer a técnicas de reprodução medicamente assistida, Cristina teve a sorte de “conseguir logo à primeira”, sabendo de antemão que as probabilidades jogavam contra si. É que apenas uma em cada cinco mulheres consegue engravidar na primeira tentativa. E quando pensa nessas contas, não deixa de lamentar que outras quatro mulheres tenham passado pela frustração de não conseguir logo.

“Comigo foi tudo muito rápido, desde o momento em que decidi recorrer à inseminação até engravidar passaram-se só quatro meses.” Aliás, todo o processo de preparação (análises clínicas, exames e ecografias) foi realizado em Portugal, à excepção do remate final. “Não deixa de ser um pouco ridículo  que a parte mais fácil e mais rápida, que é só uma espécie de ‘injecção’ com sémen, tenha de ser feita lá fora.” Passados 22 dias desde a inseminação, Cristina recebia a boa-nova com surpresa e ansiedade: estava grávida e, nove meses depois, nasceu Ana. 

Mãe solteira  Cristina garante que não sente o preconceito na pele, nem em relação à filha na escola nem em relação à sua orientação. “Toda a gente sabe que ela não tem pai e que eu sou homossexual.” Quando Ana começar a perguntar pelo pai (algo que ainda não aconteceu), também já tem uma estratégia definida, que passa por “não fazer uma tempestade num copo de água”. “Se nós não o fizermos, as crianças também não o fazem”, sublinha, adiantando que as respostas às perguntas da filha vão ser sempre as adequadas à idade e ao seu entendimento do mundo: “Se fosse nesta altura, dizia-lhe que a mãe quis ter um bebé e que foi ao médico pôr uma sementinha.” É verdade que Ana nunca irá conhecer o pai – em Espanha os dadores de sémen são e permanecem anónimos. Mas Cristina não tem qualquer dúvida  de que para as crianças, “a única coisa que lhes interessa é que gostem delas”. E isso nunca faltará a Ana, em doses mais do que redobradas, ou não estivesse Cristina a cumprir um sonho de menina. Quantas pessoas é que o conseguem? E com tantas certezas? E com tanta simplicidade?

Esta “mãe solteira” acredita que as crianças só demonstram comportamentos preconceituosos devido à educação que lhes é dada em casa e aos estigmas que os adultos criam e que transmitem aos mais novos, como acontecia, por exemplo em relação ao racismo, ou ao estigma nos anos 70 e 80 dos pais divorciados, recorda. Cristina tomou a opção de ser mãe solteira, como qualquer outra mulher o faz independentemente da orientação sexual. A maternidade sempre esteve em primeiro plano. Encontrar a “alma gémea” não é, como nunca foi, uma prioridade. “Se acontecer, também é bom.” A acontecer, espera que nessa altura a co-adopção já seja uma realidade. 

Mãe há só duas A brasileira Syara Proutiére e a italiana Sandra Feroleto têm uma história diferente. O casal, que mora na Suíça, país que como Portugal não permite a adopção nem a co-adopção por casais do mesmo sexo, conheceu-se há sete anos. Fintando a lei, Sandra e Syara decidiram adoptar uma criança, o pequeno Wisderson, agora com três anos e meio. São uma família literalmente arco-íris: Syara é morena, tem nacionalidade brasileira e francesa, Sandra tem cabelos loiros e é italiana. E Wisderson é um “chocolatinho” negro haitiano. 

Syara e Sandra ainda não casaram porque no país onde vivem não é permitido que casais do mesmo sexo recorram à adopção. Na realidade, antes de “oficializar” a união entre as duas perante a lei, o mais importante era ter filhos. Para adoptar Wisderson tiveram de esconder que eram um casal. Foi Sandra que deu o nome e a cara como solteira. Só no final do processo e quando já tinham a confirmação de que poderiam adoptar, é que a questão lhes foi colocada: “São um casal?” Revelaram que sim e do lado dos serviços a reacção foi inesperada. “Que bom, é melhor para a criança ter dois pais do que ter só um.” A lei não pensa o mesmo. 

Do Haiti receberam um dossiê com a primeira proposta de adopção e toda a documentação de Wisderson, na altura com apenas dez meses. E foi amor à primeira vista, tal como já antes tinha acontecido com elas. Oito meses depois, foram buscar o bebé ao Haiti, aproveitando também para conhecer melhor a cultura do país. E a entrada de um bebé em casa? “Foi delicioso”, respondem entre risos, com o sotaque brasileiro que é comum às duas. 

Em relação ao preconceito, atestam que não o sentem em lado nenhum. É certo que para os vizinhos parece “não ser tão simples assim”, mas os grandes entraves destes casais são os que as leis ainda colocam, quando não reconhecem os mesmos direitos na hora de ter filhos.