Mário Belém. “O menino da Linha que só quer fazer bonecos”

Mário Belém. “O menino da Linha que só quer fazer bonecos”


Mário Belém cresceu a desenhar Snoopys e Mickeys em tudo o que encontrava à mão. 


Formou-se como ilustrador, mas há três anos virou as costas ao trabalho comercial para se descobrir como artista. Acabou de regressar da China, onde deixou a sua marca numa aldeia com dois mil anos.

Quando aterrou no aeroporto de Pequim, Mário Belém, 38 anos, tinha à sua espera uma mulher chinesa com um papel com o seu nome. Estava do outro lado do mundo, depois de mais de 15 horas de viagem, e no meio de um frenesim e de caracteres que não entendia estava uma mulher com um papel com o seu nome. Foi nesta companhia que Mário Belém fez a última parte da sua viagem – uma viagem de dez horas de autocarro – até se instalar em Xucun, uma aldeia no norte da China conhecida como Xucun International Art Commune.

Quando aceitou o convite para rumar até ao outro lado do mundo, Mário Belém nem sabia bem o que acabara de fazer. “Era uma oportunidade única, mas nem sabia bem o que me esperava.” O que o esperava era a terceira edição do International Village Art Festival, uma iniciativa que, durante Agosto, leva a arte contemporânea a esta aldeia com dois mil anos e 1600 habitantes.

Este convite surgiu na sequência da participação, em Agosto do ano passado, no Djerbahood, um projecto que levou à ilha de Djerba, na Tunísia, 150 artistas plásticos de todo o mundo – entre os quais os portugueses Pantónio, Add Fuel, Mário Belém e Arraiano – que pintaram mais de 300 paredes, transformando a ilha numa espécie de museu a céu aberto. Antes, Mário já havia participado no projecto Tour Paris 13, uma exposição de um mês que foi vista por mais de 30 mil pessoas e que contou com mais de 100 artistas a intervirem num edifício de nove andares prestes a ser demolido.

Na China, num total de 20 artistas, além de Mário, apenas outros quatro se dedicavam à street art: Tinho, do Brasil; Stinkfish, da Colômbia; Mosko, de França; e Wenna, da China. E isto reforçou a pluralidade da experiência. “O facto de ser uma residência artística em que o principal foco não era a street art tornou a experiência ainda mais espectacular, porque nos permitiu muita troca de ideias em áreas artísticas diferentes – além, claro, de nos permitir conhecer artistas chineses.”

Apesar de estar numa aldeia milenar e instalado na casa de uma família de agricultores que mal falava inglês, Mário descobriu uma China muito diferente daquela que havia imaginado. “Fui a achar que a China ainda era a China do Mao Tse Tung, mas descobri um país moderno, mesmo estando numa aldeia. E como estávamos numa altura em que as colheitas tinham acabado e, portanto, as pessoas da aldeia não tinham muito para fazer, o que faziam era andar atrás de nós.”

Durante dez dias, Mário Belém deixou a sua marca num mural colectivo e num outro mural da sua inteira responsabilidade, intitulado “A Loja dos Dragões”, um projecto que só poderia ter sido realizado ali. “Há pessoas que fazem street art e criam à sua imagem, seja nos EUA ou na China. Eu acho que devo adaptar-me às comunidades que me estão a receber. Até porque, quando me vou embora, quem fica vai ter de conviver com ela todos os dias. Por isso, quis criar esta loja de dragões, uma figura muito importante na mitologia chinesa.”

Menino da Linha por convicção, MárioBelém nasceu em Lisboa e cresceu em Carcavelos, onde ainda hoje vive. Passou a infância agarrado aos cadernos, a desenhar Snoopys, Mickeys e restante bonecada. Ao contrário de tantos (a maioria) dos artistas da sua geração, que andam a dar cor às paredes das cidades, Mário nunca andou pela noite, spray em riste, a pintar carruagens de comboios. Lá está, do que ele sempre gostou foi de pintar bonecos. Por isso, aos 16 anos já fazia uma banda desenhada numa revista de bodyboard. Mas quando chegou a altura de escolher um curso superior, achou que isto de pintar bonecos não era profissão e foi para Arquitectura. Má escolha. Desistiu e mudou-se para Design Gráfico, na ARCO. Perdeu-se um arquitecto, mas ganhou-se um ilustrador.

Há três anos, no entanto, tudo mudou. “Chateei--me com a publicidade. Dava por mim a acordar todos os dias com problemas de consciência. E cada vez me sentia mais fascinado pela ideia dos murais e de poder interagir com as pessoas. Não queria continuar a adiar projectos pessoais para ser ilustrador comercial. Percebi que a maior riqueza não é o dinheiro, mas é mesmo poder gerir o meu tempo. Comecei a tentar encontrar a minha voz.”

Neste processo, as imagens de infância, de quando passava pela 24 de Julho e não conseguia tirar os olhos dos murais, surgiam-lhe cada vez mais recorrentes. Tal como a memória do pai, o artista plástico Victor Belém, que morreu no início deste ano, depois de um processo de doença de cerca de três anos. “Não me repensei de um dia para o outro, com a morte do meu pai. Foi, tal como a doença dele, um longo processo. O meu pai nunca foi um homem da linha da frente, foi sempre um homem contra o regime.Talvez seja por ele que sempre me fez muita confusão perceber qual o ponto a partir do qual me podia chamar artista. Para mim, artista é uma palavra muito pesada, sou só ilustrador, sou só o gajo que faz bonecos e que está a tentar ser artista.”

Actualmente, Mário Belém está a preparar várias pinturas murais para Lisboa, nomeadamente um mural gigantesco para a Quinta do Mocho – um projecto que lhe tem permitido descobrir o fascínio pela escala. “Quando trabalhava com publicidade e ilustração ou até quando estava a preparar peças para a minha exposição, bastava-me dar um passo atrás para ter uma perspectiva do que estava a fazer. Quando é um prédio, tenho de recuar uns 150 metros para ter noção do que estou a fazer. Além disto, também me obriga a aprender a dominar os sprays. Isto tudo dá-me medo, mas também pica.” Além disto, Mário prepara-se para começar a trabalhar numa nova exposição. Esta terceira mostra segue-se a “Só Há Uma Verdade: a Saída é pelo Espelho”, título emprestado de uma obra do pai. E é certo que terá muitos bonecos.