Jaime Nogueira Pinto. “Falta muito aos políticos o lado trágico da vida”

Jaime Nogueira Pinto. “Falta muito aos políticos o lado trágico da vida”


O empresário e escritor fala sobre a morte da mulher, África, a Igreja, o conflito com o islão e o futuro da Europa.


Jaime Nogueira Pinto recebeu o i no seu escritório no Chiado, na Rua dos Sapateiros, no dia do funeral de Maria Barroso. A mesma semana do aniversário da morte de Maria José Nogueira Pinto, a mulher que o levou a escrever o seu primeiro romance, “Novembro”. É com um sorriso aberto que mostra e explica, uma por uma, cada fotografia que preenche os móveis da sala: ele próprio ao longo dos anos acompanhado da mulher, dos filhos, dos netos, de presidentes, um papa e outras personalidades. Pelo meio há muita África e até um grupo de securitas, que quase parecem uma equipa de capacetes azuis da ONU, mas pertencem afinal à empresa de segurança privada de que é sócio em Moçambique.

Foi para Angola mesmo no final do império e para ir para a guerra teve de trocar com um camarada que mal conseguia acreditar. Travou amizade com Savimbi, “um político com grande inteligência, mas também com a manha dos sobreviventes”. Licenciou-se em Direito mas não se considera advogado: é empresário, investigador, comentador e escritor – nada do que imaginou a determinada altura da vida: “Quando era miúdo queria ser padre porque achava que ia para o Céu mais depressa. Depois percebi que não era essa a questão. Os padres são pessoas que estão sujeitas às mesmas tentações e às mesmas paixões que todos nós.”

Tem uma fotografia com João Paulo II. Ainda não tem com o Papa Francisco. Vai ter?
Vou, se Deus quiser.

Como se iniciou a sua relação com a Santa Sé?
Nos anos 80 e 90 nós fazíamos a ligação entre alguns movimentos de guerrilha em África e a Santa Sé por causa do resgate de prisioneiros, por isso passámos a ter alguma familiaridade com as pessoas de lá.

Também é um entusiasta deste Papa?
Sou católico, apostólico e romano – o que não que dizer que seja melhor que os outros, às vezes até sou pior. Mas não tenho em relação aos papas as emoções que as pessoas têm; ora gostam muito, ora gostam pouco. O Papa, para mim, é como quando eu era alferes de infantaria: “ó meu capitão” – ele mandava e eu obedecia. Posso achar mais graça ou menos graça, mas é este o princípio, não tenho ou deixo de ter entusiasmo. Sou muito institucional nisso.

Mas as pessoas não são todas iguais, ou são?
Na minha vida já conheci seis papas, de Pio XII, ainda muito marcado pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria, a Bento XVI, grande teólogo e professor alemão, que tem como preocupação a descristianização da Europa, sobretudo ocidental, que se tornou uma sociedade pagã:pão e circo – ou restaurantes e circo. Já me aconteceu estar em sítios em que a conversa é só sobre restaurantes. O Papa Francisco, pelo seu ADN – a família vem de uma zona de Itália onde o cristianismo é rigoroso mas ao mesmo tempo muito terra-a-terra – e pela experiência de missão na Argentina, com períodos difíceis de governo militar e pós-militar, segue outra vez uma linha mais franciscana, mais humilde e mais próxima das pessoas.

Nunca põe Deus em causa, nunca duvida?
Há aqui uma questão de mistério. Quando cheguei à idade da razão em matéria religiosa, a minha mãe, que era uma pessoa inteligente e com um grande sentido prático, disse-me isto: “Se tu não aceitares que há mistérios, vais perder a fé rapidissimamente. Pela nossa cabeça há muita coisa na religião que é absurda.” Foi uma prevenção, porque tive uma crise religiosa entre os 15 e os 17/18 anos – muito pela leitura de Nietzsche.

Não vale a pena procurar uma razão para tudo…
Mas quem não perceber o mistério tem dificuldade em entender porque é que Deus funciona assim. Podia funcionar de outra maneira, podia ser como a mãe de Woody Allen em “Histórias de Nova Iorque”, que aparece lá em cima numa nuvem a ralhar todos os dias e a mandar corrigir os erros, como o Deus do Antigo Testamento, que mandava raios ou então, pelo contrário, abria o mar para dar passagem aos bons. Mas não sendo assim tem de ser através de sinais, umas coisas às vezes estranhas, físicas. Eu parto do princípio de que há uma certa racionalidade nestas coisas e de que se a Igreja está no mundo tem de atender às suas necessidades e, ainda que inspirada pelo Espírito, é conduzida por homens, que valem o que valem.

Agora que fala em raios, mar e terra, até esta encíclica é “verde”…
A ecologia nunca foi, ao contrário do que pensamos, monopólio das esquerdas humanitárias, das esquerdas românticas. O Papa é pela liberdade económica, o que condena é esta ânsia puramente aquisitiva e desenvolvimentista feita à custa de tudo e de todos, da natureza e do meio ambiente. E nisso não está a romper com nada, é uma tradição muito forte na Igreja Católica.

Passaram no dia 6 quatro anos sobre a morte da sua mulher [Maria José Nogueira Pinto]. Normalmente os maridos morrem primeiro…
E antes ainda mais, por causa do tabaco, do álcool e dessas coisas, que eram mais comuns entre os homens. Nunca se pensa muito que possa ser assim. Além da tragédia que é para quem fica, e que é muito complicado, é uma ideia um bocadinho… não se está muito preparado. Eu… a Zezinha era sete anos mais nova que eu e não havia muito essa expectativa. Não é fácil. Mas… mas vive-se.

Vive-se como?
Ficam memórias, memórias vivas, que são as pessoas, os filhos, os netos. E isso é muito importante. Estamos vivos e procuramos continuar a fazer coisas. Além disso, perante o exemplo dela, uma pessoa tão corajosa e tão discreta a fazer coisas grandes, era o que mais faltava que eu ficasse para aí a choramingar pelos cantos.

Lembrou-se das palavras da sua mãe sobre os mistérios a propósito da morte prematura da sua mulher?
Quais? Sobre o mistério? O mistério doloroso do mal que nos acontece? É um mal tão misterioso como foi misterioso o bem de a ter encontrado e ter passado a vida com ela.

Houve alguma coisa que a sua mulher lhe tivesse pedido que fizesse ou acabasse por ela?
Não, não foi tanto isso. Mas há uma coisa que hei-de fazer por nós. Como toda a vida viajei por causa do trabalho, nunca tive aquela coisa de nas férias ir a sítios. Férias, para mim, eram como no Verão em que acabei a tese e fiquei em Lisboa sozinho, no mês de Agosto. Foi agradabilíssimo. Lembro-me que me telefonou um amigo a perguntar onde é que eu passava as férias e quando lhe respondi que ficava em Lisboa disse-me: “Ai que bom. Sem viagens, sem aviões, sem crianças.” Exactamente. Este era o meu conceito. Mas a Zezinha queria ir a sítios e um dos locais onde queria ir e nunca fomos era ao Egipto, ver as pirâmides. Ainda hei-de fazer isso. Também por ela. Mas de resto não, penso que, do nosso modo, sempre fomos procurando fazer as coisas que tínhamos de fazer. Ela falhava pouco.

Quero falar do seu último livro, “O Islão e o Ocidente – A Grande Discórdia”, mas antes gostaria de lhe perguntar se pensa escrever outro romance como “Novembro”?
Sempre tive a ideia de que a ficção era uma forma superior da expressão literária, uma coisa reservada aos grandes, os Balzacs, os Fitzgerald, os Eça de Queirós, os Camilo Castelo Branco, os Thomas Mann, os russos, Dostoyevsky e Tolstoi. E depois, sem desprezo pelos outros, havia a literatura dos bestsellers. Eu nunca me achei capaz, mas também não queria muito entrar pela segunda linha, portanto nunca me atrevi a escrever ficção.

Até então.
Quando a Zezinha adoeceu tive necessidade de recordar determinadas coisas de nós e comecei a escrever. Depois acabei. O “Novembro”, no fundo, também foi a história de uma época e de uma geração, muito colada à realidade. A ficção, ao fim e ao cabo, é sempre autobiográfica, porque é uma experiência directa do autor ou de pessoas ou situações que ele foi contemplando e que, através da máquina da escrita, vai adaptando e digerindo e transmitindo aos outros. Acabou por ser uma história também da sociedade portuguesa, entre o Verão de 1973 e o dia 26 de Novembro de 1975. Chamei-lhe Novembro por ser um mês–chave, em que duas gerações políticas, da esquerda e da direita, perdem os seus dois grandes mitos, as suas ilusões: a revolução igualitária ou socialista e o império.

Vai voltar a escrever um romance?
Vou escrever outro, se Deus quiser, mas a ficção não se escreve ordenadamente, é muito mais uma coisa que nos impele a escrever, que nos manda escrever. Isso também fica à mercê desse estado de espírito. Mas já tenho algumas ideias. E escrever é óptimo.

É um romântico?
Não sei… Sou. Apesar de em política procurar defender a Realpolitik, acho que fui mais um romântico que um realista na condução da minha vida pessoal, porque normalmente dediquei-me mais depressa a causas perdidas que ganhas. E fui sempre ficando à volta de um núcleo de ideias e de princípios e valores que tenho a consciência de que não eram, nem são, maioritários, pelo menos na política portuguesa.

Neste momento dedica-se a alguma causa perdida?
A várias [risos]. Não, não penso que Portugal seja uma causa perdida, tal como fazer os portugueses olhar para outras áreas, mesmo em termos dos nossos interesses estratégicos e económicos que não a Europa. Mas são causas difíceis. Sem estar a romantizar, que já estou farto que se dê valor às pessoas depois de elas desaparecerem, a verdade é que há coisas que fizemos ou fazemos melhor que os outros. Como em tudo, os vícios têm sempre uma contrapartida de virtudes. O bom e o mau, o pior e o melhor andam muitas vezes juntos. E os mornos são sempre mornos: se calhar não matam ninguém, mas se estiver um desgraçado a afogar-se também não o salvam.

O que fazemos e fizemos melhor que os outros?
Temos alguns exemplos interessante na história militar, nas chamadas companhias disciplinares, que recebiam tipos com problemas, que cometiam crimes, muitas vezes nalgumas forças especiais, na Legião Estrangeira. Eram óptimos combatentes, porque a mesma massa humana dá para as duas coisas, para se ser bandido tem de se ser arrojado. Portanto, se for bem orientado, pode dar para o bem. E nós temos isso, uma capacidade muito especial de relacionamento com os outros, uma belíssima capacidade de improvisação. A universidade, a boa universidade, devia preparar para o imprevisto. Duvido que haja muitas faculdades em Portugal a fazê-lo. Se esse capital for bem usado pelos governos, pelos responsáveis das empresas, das instituições, pode dar muita coisa. Não é uma unidade desprezível, 10 milhões de pessoas no país e 5 milhões na diáspora.

Continua ligado a África e tem uma empresa em Moçambique. Pode falar um pouco sobre essa relação?
Continuo muito ligado a África em vários domínios. Preocupo-me, e nessa medida também procuro encontrar soluções. A empresa de que fala é uma empresa de segurança privada, com outros accionistas, que emprega à volta de 4500 pessoas. Mas a minha ligação a África teve duas fases. Primeiro a África do imaginário, trazida pelos filmes, pelos livros, como “As Minas do Rei Salomão”, traduzido pelo Eça de Queirós, e depois, a partir dos 30 anos, uma ligação que passa a ser essencialmente política.

Quando foi pela primeira vez a África?
Não havia ligações familiares nem económicas. O meu pai era industrial na área têxtil e teria na altura também negócios para lá, mas mais nada. A minha relação era quase ideológica, do império, da unidade de Portugal. Quando chegou a altura do serviço militar, pensei que o mínimo que tinha de fazer era ir lá. Se não, faria parte daquela figura que os americanos chamam, com imensa graça, os “chickenhawk”, que são os tipos muito esforçados e defensores da pátria mas que, quando chega a hora, se baldam. Conheci alguns. Filhos de pessoas com responsabilidades políticas no regime anterior, que quando chegava a hora de ir metiam cunhas e ficavam. Isso é um tanto desmoralizador. O sistema tinha coisas muito estúpidas e já no final do regime uma das punições aos dirigentes associativos era não lhes dar o adiamento do serviço militar até se formarem e mandá-los para a tropa como castigo, e nalguns casos para África. Uma coisa completamente contraditória, imbecil e repugnante, mas fazia-se.

Foi o que lhe aconteceu?

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Não. Os mais bem classificados nas responsabilidades individuais, que era o meu caso, não iam. Para ir para África tive primeiro de me oferecer, e depois, como nunca mais era mobilizado, pouco antes do 25 de Abril troquei com um camarada meu da especialidade que já estava mobilizado e fui. Ele, aliás, julgou que eu tinha tido um desgosto amoroso ou coisa do género. Ficou felicíssimo da vida. Cheguei lá exactamente no fim do império. Conto as peripécias todas no meu livro “Jogos Africanos”. Graças a Deus que fui. Primeiro porque era o mínimo que podia fazer, mas isso nunca esteve em causa. Depois porque me envolvi naquilo, em Angola, e no 28 de Setembro – tive um mandado de captura e vieram prender-me a casa a Lisboa – tive de atravessar Angola e sair para a África do Sul, onde fiquei quase um ano. Ainda estive envolvido nas guerras todas de Angola até ir para o Brasil e depois dois anos para Madrid. Voltei e nos anos 80 houve todo um envolvimento com as guerras civis, quer com Angola quer com Moçambique, e com a pacificação dessas guerras. Fiquei a dar-me muito bem com alguns dos nossos mais antigos e ferozes inimigos. Penso que uma vez que a história decidiu o que decidiu, não há razão para discriminar. Pelo contrário, são pessoas que lutaram por aquilo em que acreditaram, fizeram exactamente aquilo que eu fiz, até talvez acreditássemos em coisas semelhantes, só que estávamos em locais diferentes. E a história é isso.

A sua ligação com Jonas Savimbi, líder da UNITA, qual era exactamente? Pode contar uma ou duas histórias?

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