Regicídio. O dia em que Manuel Buíça iniciou o fim da monarquia

Regicídio. O dia em que Manuel Buíça iniciou o fim da monarquia


O golpe que há 105 anos marcou o princípio do fim do regime monárquico continua a ser motivo de polémica.


Manuel Buíça sabia que nunca mais voltaria a ver os filhos. Quando caminhou do Rossio para o Terreiro do Paço, com Alfredo Costa ao seu lado, a meio daquela tarde amena de 1 de Fevereiro de 1908, o transmontano estava ciente de que a sua missão teria um preço elevado: o da própria vida. Mas esse capítulo que influenciou o último século da história de Portugal nunca ficou resolvido. Este fim-de-semana, numa emissão da TVI a partir do MuseuNacional dos Coches, José Alberto Carvalho conseguiu, com uma simples frase, reacender a discussão sobre a morte do rei. “Está sempre tudo por dizer em relação ao sonho e à mudança”, disse o pivot, junto ao landau onde D. Carlos e o príncipe D.Filipe (o primeiro na linha de sucessão ao trono) foram mortos. O assassinato do rei teve outro protagonista: Aquilino Ribeiro, tido como o pensador do regicídio.

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Há algum tempo que a situação política estava quente. Um ano e meio antes, Afonso Costa – figura de proa na implantação da República – apontara o dedo aos gastos do regime e deixava o aviso: “Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI.” Aquelas palavras, proferidas na Câmara dos Deputados, foram muito mais do que um sinal. O tempo da monarquia caminhava para o fim.

Cinco meses antes do regicídio, Manuel Buíça ficara viúvo. Os dois filhos que estavam ao seu cuidado eram a principal preocupação, deixada a letra de tinta quatro dias antes do assassínio do rei. “Apontamentos indispensáveis se eu morrer” – foi esse o nome que Manuel Buíça deu ao documento onde explicava ser natural de Bouçoães e ter dois filhos. “Elvira que nasceu em 19 de Dezembro de 1900, na rua de Santa Martha (…) e que não está ainda baptisada nem registada civilmente por motivos contrarios da minha vontade” e, ainda, Manuel, como o pai, afilhado de Aquilino Ribeiro. “Nasceu em 12 de Setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria”, escreve Buíça. A quem cuidasse deles, Manuel Buíça deixava uma mensagem: “Peço que os eduquem nos princípios de liberdade, egualdade e fraternidade em que eu comungo e por causa das quaes ficarão, porventura, em breve, orfãos.”

Alfredo Costa era, como lhe chama Jorge Morais no livro “Os últimos dias da Monarquia”, o “chefe do ‘grupo dos 18’”.  Tinha 23 anos no dia do regicídio. O jornalista recuperou a descrição que Aquilino Ribeiro faria mais tarde do líder do golpe. “Alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste […], grandes olhos castanhos, lentos a mover-se, com uma fixidez que parecia de sonâmbulo e era de atenção, um nada de barba loura no queixo, o nariz levemente amolgado sobre a esquerda”. Um homem que se educou “como pôde”.

Mas foi Buíça quem disparou certeiro sobre o rei. Almoçou com Costa no Café Gelo, no Rossio, um ponto regular de passagem para os conspiradores. Pediram uma omeleta e beberam uma cerveja cada e Buíça, 32 anos, escreve uma última carta a Maria, a sua amante. “Vou morrer matando – ironia curiosa e para muitos talvez incompreensível e portanto condenável.” Poucas horas depois, o atirador salta para o meio da rua, onde o landau da família real passa. Encosta a carabina ao rosto e, de joelho no chão, dispara sobre D. Carlos, que está de costas. “O projéctil atingiu-lhe a base do pescoço, destroçando-lhe a coluna vertebral”, escreve Jorge Morais.

Alfredo Costa surge mais à frente e também ele dispara sobre um D. Carlos inerte, já tombado sobre a rainha. De seguida, aponta a D.Filipe, o príncipe que já empunhava a sua Colt 38. Costa atinge o herdeiro no pulmão, um tiro que acabaria por revelar-se também fatal.

Aquilino Ribeiro permaneceu na sombra. Esteve – sobretudo com Alfredo Costa – nas reuniões preparatórias do golpe. Foi ele mesmo arrendou o segundo andar de um prédio junto ao quartel da guarda municipal, junto ao Castelo, onde a missão foi preparada. Logo em 1908, Aquilino exilou-se pela primeira vez, acusado de ser bombista e depois de ser detido. Deixaria novamente o país em 1927 e, pela última vez, em 1928. Regressa definitivamente a Portugal em 1932 e é amnistiado pouco depois.