Uma leitura que vive, alerta, que destabiliza e nos acossa meio século depois da sua escrita. Num registo brilhante, de recorte clássico, onde ecoam os grandes moralistas franceses do século XVII, muitas vezes a golpes de dilacerante concisão, outras balançando o abstracto num elevado grau poético, em “A Sociedade do Espectáculo”, Guy Debord traça em tom profético as misérias e as servidões da sociedade, tal como ela se configurou no nosso tempo.
Ele foi um artista de estirpe filosófica, radical, o arqui-rebelde que se orgulhava de merecer totalmente o “ódio universal” da sociedade. Um crítico visionário que compreendeu a rede de fenómenos que compõem esta modernidade. A alienação e o comodismo que marcam a pacífica derrota das sociedades subjugadas à lógica da mercadoria, num tal grau de acumulação que tudo adquire a dimensão abstracta e fantasmagórica da imagem.
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“Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação.” Em 1967, estava ainda longe a encenação da vida que a realidade virtual viria a construir, as redes sociais eram uma mera probabilidade de ordem especulativa ou ficcional, mas nesse ano foi publicada esta obra-prima onde se reconhecia que não só as relações sociais autênticas mas o próprio enquadramento, os tijolos e a argamassa que nos ligam uns aos outros, foram substituídos, passando a ser simulados. Não vivemos senão uma representação da própria vida, da qual, verdadeiramente, fomos expropriados, num modelo de escala 1:1. Um reflexo capturado numa sequência imparável, num presente constante.
Não se trata de um diagnóstico que tenha como valor capital falar uma linguagem transparente. Pode-se dizer que o estilo desenvolvido por Debord é em si mesmo hostil a uma aproximação imediatista. O próprio sentido de comunicação simplificada em que o jornalismo degenerou nas últimas décadas participa da ilusão que é denunciada. A informação que se verga ao entretenimento, a omnipresença sufocante da cultura do estrelato, as celebridades que fazem dos restantes membros da sociedade os pobres espectadores, experimentando a vida em segunda mão. “O agente do espectáculo posto em cena como vedeta é o contrário do indivíduo, o inimigo do indivíduo, tanto em si próprio como, evidentemente, nos outros.”
Não há nada de inocente no facto de, hoje, a maioria das crianças sonharem com a fama. Não é uma forma de ingenuidade, é uma compreensão clara do que está em causa na escalada social. As celebridades, como esclarece o autor, são os especialistas desta vida aparente, são os sujeitos superficiais de todos os desejos, aqueles que concretizam os sonhos para os quais os restantes vivem. Funcionam como miragens: as personagens com as quais somos levados a identificar-nos numa compensação para a função cada vez mais acessória, ultra-especializada, da vida que vivemos. A produção procura que tudo seja substituível.
Desapossados, incapazes de verdadeiras escolhas, de uma autonomia que não milite pela lógica do consumo, os indivíduos tornam-se factores de uma ordem quantificadora, meros fragmentos, soldados da disciplina económica que levou a que o “ser” se tenha despedido da sua liberdade em troca da acumulação, do “ter, que por sua vez não passa de um efeito de “imagem”, a capacidade de “parecer” e assim assumir protagonismo nesta peça de um único acto, infinito.
Ele escreve que por trás das máscaras de total liberdade de escolha, apenas se confrontam diferentes formas – subprodutos – da mesma alienação. O espectáculo, os espectáculos estenderam a sua dominação a todos os aspectos da vida social, abarcam tudo, burocratizam tudo, a própria angústia causada pela insatisfação é só outra vertente do comodismo, e a rebelião só sabe promover-se segundo uma dinâmica “puramente espectacular”.
Os conflitos que na nossa sociedade se representam não alcançam qualquer desvio, os opostos concebem uma perfeita simetria que tudo equilibra e anula. O próprio cinismo desta época, a desconfiança e descrença, as sensações que hoje se nos impõem de forma sintomática, foram de algum modo previstas em “A Sociedade do Espectáculo”. O próprio título foi transformado numa expressão de uso corrente, designando uma relação com o mundo saturada pelas imagens segundo uma regra que Debord formula desta maneira: “tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece”. É um conceito diluído, uma banalidade se relacionado com o verdadeiro sentido que Debord lhe atribuiu, mas essa mesma banalização não deixa de ser indicativa do alcance do seu pensamento.
O livro, que foi acusado de ser uma compreensão paranóica do progresso engendrado pelo capitalismo, lê-se hoje como a mais deliberada e veemente sucessão de ataques a uma sensibilidade que introduz em cada um dos nossos comportamentos um valor, uma forma de prestígio imediato, condicionado pelo fetichismo da mercadoria. Mas exactamente por o livro se confrontar com uma malha em que os agentes e os sujeitos se confundem – as vítimas mais que amar os carrascos se projectam neles –, não é fácil resumir a tese de Debord. A sua presciência faz com que este seja um livro que chegou hoje ao tempo da sua plena legibilidade. Hoje seria mais complicado acusá-lo de paranóia.
O seu génio não se ficou pelas palavras que bateu na máquina de escrever. A ordem social que viu despontar foi o seu alvo quando, na década de 1960, se assumiu como líder da Internacional Situacionista, uma célula de intelectuais restrita e sempre em convulsão onde confluíam todo o tipo de influências, mas cuja perspectiva sobre o mundo combinava essencialmente dois elementos: a compreensão do fenómeno da alienação bebida nos escritos de Marx e uma ênfase num tipo de pesquisas que nunca foram muito apreciadas pela esquerda tradicional – manifestações mais comuns a movimentos artísticos como o surrealismo e os dadaísmo, aquele tipo de sensibilidade que segue o lado mais irracional do desejo. “A Sociedade do Espectáculo” tem óbvios antecedentes, algumas das suas ideias não são sequer inovadoras. Pode-se-lhe traçar uma genealogia, começando por Hegel e Marx, Engels, Lukacs e a Escola de Frankfurt.
E houve contemporâneos de Debord que também desmontaram esta confluência. No mesmo ano, o seu cúmplice e depois, talvez, o seu maior rival, Raoul Vaneigem, publicou “A Arte de Viver Para as Novas Gerações”, um ensaio escrito num registo mais directo, mais humano e mais propagandista: “Consumir é ser consumido pela inautenticidade, alimentando a aparência em favor do espectáculo e às custas da verdadeira vida. O consumidor morre onde se agarra porque se agarra a coisas mortas: a mercadorias, a papéis…”
As duas obras assinalavam as bandeiras da Internacional Situacionista, e no ano a seguir à sua publicação o movimento viveu o seu momento de glória com o Maio de 1968, a revolta estudantil em França que realmente desafiou a ordem social, com uma série de ocupações que começaram pelas universidades e contagiaram os trabalhadores. Houve uma greve geral que contou com a participação de 10 milhões de trabalhadores. O governo e as uniões sindicais chegaram a um acordo mas nenhum trabalhador voltou ao trabalho. A greve terminou somente quando De Gaulle colocou as forças armadas nas ruas de Paris.
Debord vomitaria na cara dos nossos comentadores que enchem os canais no sinal constante para defender a condição fluente de um discurso que mata toda a crítica de relevo. Eles representam, no mais alto grau, aquilo que Debord analisou, radicalizando alguns aspectos do que é ainda actual na teoria marxista, mas indo para além dela, e que constitui talvez a sua “lição” mais importante: o principal factor de alienação consiste no processo que nos desapropria e aliena da linguagem.
Debord passou os seus últimos anos retirado no centro rural da França, na aldeia de Champot (Auvérnia), e em Novembro de 1994, aos 62 anos, pôs fim à vida com um tiro no coração. A sua guerra contra o espectáculo passou por uma série de manobras tácticas, “a construção de situações”, cujo principal objectivo era expor ao ridículo os seus inimigos. E cultivou-os como ninguém. Há toda uma novela de contornos em que é difícil estabelecer a fronteira entre a realidade e os rumores, o conjunto de mitos que fizeram de Debord um dos personagens mais fascinantes da história moderna. Depois dos eventos do Maio de 1968, há relatos sobre o seu envolvimento em acções terroristas em Itália e até no assassinato de alguns dos seus antigos cúmplices. Durante mais de uma década foi mantido sob vigilância pelos serviços secretos franceses, e, se a sua vida pública nunca se dissociou das suas intenções revolucionárias, o exílio que se impunha era muitas vezes perdido com travessias alcoólicas. Mas se tinha inimigos mortais, não deixou nunca de ser dos homens mais admirados entre a elite artística e os círculos dos negócios e da política franceses.
Após o suicídio, o romancista Philippe Sollers, uma das figuras centrais na cena intelectual parisiense, afirmou no “Lebération” que a bala no coração tinha “uma importância revolucionária”. Segundo ele, para Debord o suicídio era a forma mais pura de crítica do “espectáculo”. Outros defenderam que passou os últimos anos deprimido por ter chegado à conclusão de que os seus escritos tinham deixado de ser um alerta, um apelo revolucionário, e se tinham tornado uma descrição precisa da vida moderna.