Susana Romana. “Quando as pessoas se riem é uma sensação fantástica, tipo droga”


Dizer piadas não é tão fácil como rir delas. Na verdade é coisa com ciência, várias regras e palavreado adequado para descobrir em “Escrever para Comédia. Um Guia Prático para Arruinar (ou Salvar) Vidas”. Encontrámo-nos com a autora, Susana Romana, que produz conteúdos para as Produções Fictícias e para o Canal Q. A dar aulas…


Dizer piadas não é tão fácil como rir delas. Na verdade é coisa com ciência, várias regras e palavreado adequado para descobrir em “Escrever para Comédia. Um Guia Prático para Arruinar (ou Salvar) Vidas”. Encontrámo-nos com a autora, Susana Romana, que produz conteúdos para as Produções Fictícias e para o Canal Q. A dar aulas de Escrita para Comédia há sete anos, resolveu pôr tudo em papel com exercícios práticos, qual trabalho de casa do humor.

Como surge este livro, que é uma espécie de manual?

Era uma ideia que tinha há algum tempo porque dou aulas de Escrita de Humor e é um tema pelo qual me interesso. E quando os meus alunos me pedem bibliografia, ou livros de exercícios, tenho sempre de lhes recomendar coisas em inglês. Sempre quis colmatar esta falha de mercado, de não haver nada para escrever humor com exercícios e adaptado à nossa realidade, que não é igual à anglo-saxónica. E há cada vez mais gente com vontade de escrever humor, seja a nível profissional seja para se entreterem, é um bocado o nazismo das redes sociais. Então falei com o Fernando Alvim, que é o editor da Cego Surdo e Mudo, e como o próprio já andava com vontade de lançar uma colecção de workshops variados juntou-se a fome à vontade de comer.

Pôr tudo no papel foi fácil?

Nas aulas apanho públicos muito diferentes, porque dou aulas em sítios diferentes. Nos workshops das Produções Fictícias apanho mais pessoas que querem fazer daquilo vida e que estão muito mais na onda Cinderela, à espera de serem descobertas, mas depois ao mesmo tempo dou aulas noutros sítios descontraídos. Uma vez apanhei uma senhora de 72 anos que tinha sido inscrita pelo neto porque, e cito: “Eu não acho graça a nada e ele queria perceber porquê.” Por isso tive que me habituar a explicar isto de maneiras diferentes.

Que outros alunos lhe ficaram na memória?

O mais novo que apanhei foi com 14. Normalmente os meus cursos são para maiores de 16, mas este caso foi um pai que perguntou se o filho podia ir. Disse que sim – estando o senhor ciente de que alguns dos exemplos que mostro têm linguagem forte ou falam de sexo. Apanho género muito variados… curiosos… de humor, que querem saber como funciona, gente que quer fazer stand-up. Porque agora a moda é ser chefe de cozinha, mas nos últimos anos era fazer stand-up. Apanho pessoas de agências de publicidade, da área das finanças que têm de estar constantemente a fazer apresentações e querem torná-las menos enfadonhas. Nos workshops do El Corte Inglés, que são durante a semana, à tarde apanho pessoas desempregadas ou reformadas. Uma vez uma senhora de 80 anos veio ter comigo no final da aula: “Queria convidá-la para beber um…” – eu a achar que a frase acabava com café, mas não, era uísque. Então a seguir às aulas fui beber uísque com uma senhora de 80 anos que escrevia imensas piadas sobre puns. E eu adorava. Apanho mesmo de tudo. Também acontece, apesar de ser mais raro, apanhar pessoas que estão numa fase menos boa da vida, que perderam familiares ou estão desempregadas, e usam o humor para lidar com isso.

Pode ajudar?

Acho que sim. Um dos motivos que nos levam a rir de uma coisa é o sentimento de superioridade, rimo-nos para nos sentirmos superiores a algo. Dois amigos meus que são comediantes já perderam um o pai e o outro a mãe, e em ambos os velórios estavam a dizer muitas piadas. Tenho a certeza que provavelmente era o dia mais horrível da vida deles, mas uma pessoa usa as piadas como mecanismo de escape. Acho que ajuda a dar outros ângulos às coisas. Por exemplo, quando se fala do 11 de Setembro e do tsunami começam logo a surgir piadas, e isso não é só sadismo.

Compara ensinar humor com o futebol. Que não se pode ensinar a jogar à bola como o Ronaldo mas pode-se dar umas dicas.

As pessoas perguntam-me constantemente: “É possível ensinar as pessoas a ter graça?” As pessoas gostam de ter aquela ideia romântica que é um acto puro de inspiração que desce dos céus e faz as pessoas hilariantes, mas a verdade é que isto tem trabalho e técnica por trás. Quando estou a escrever um texto de humor para um canal de televisão não estou constantemente a pensar: aqui vou fazer uma inversão, ali é a regra dos três. Mas também é porque tenho treino suficiente para as coisas saírem com naturalidade. Ao mesmo tempo, sei que, se tiver com um bloqueio ou um prazo apertado, sei tecnicamente o que tenho de fazer para desbloquear as ideias. Apanho nas aulas muitas pessoas que estão habituadas a ser os engraçadinhos do grupo de amigos mas depois confrontados com o “faz lá uma coisa com princípio meio e fim” percebem que é mais difícil do que julgavam.

Daí os muitos exercícios no livro.

57, se não me falha. Como é uma coisa muito autodidáctica, ainda não há propriamente um curso de Estudos Superiores de Comédia. O humor tem essa crueldade, que tens de tentar fazer e mostrar a outras pessoas. Se escreves poesia, podes escrevê-la para a tua gaveta a vida inteira, as angústias todas e não mostrar a ninguém. Mas se escreves comédia ela tem um propósito muito básico e muito simples que é fazer as pessoas rir. Causar bem-estar, outras vezes desconforto, mas causar uma reacção biológica, se quiseres. E se escreves para não mostrar a ninguém perde um bocadinho o seu propósito.

O curso de Jornalismo foi um erro de percurso?

Tenho o curso de jornalismo porque sou o cliché da pessoa que gostava de escrever e não sabia para que curso havia de ir. Olhando com atenção e fazendo alguma psicanálise, sempre tive mais tendência para escrever ficção, principalmente humor. Recebi uma máquina de escrever muito cedo – que eu queria levar para a praia e os meus pais não me deixavam, ficava muito triste – e sempre me lembro de escrever contos como prendas de Natal, nem que fosse para a família. E no início da escola até à adolescência era uma pessoa muito tímida, a pessoa que usa o humor para se defender, gozar consigo própria antes que os outros o fizessem. Depois, mais a nível profissional, comecei a fazer workshops. Aliás, nas aulas tenho imenso respeito pela pessoa que me está a ler o texto porque sei que não é fácil, passei por isso. Depois é um bocadinho tipo droga, quando as pessoas se riem é uma sensação fantástica, esquecem-se as sensações de merda de quando a pessoa não se riu.

Recorda-se da primeira grande ocasião de entrega de um texto?

Estou nas Produções Fictícias há dez anos, desde os 21. Aos 23 tornei-me associada. A primeira vez que fiz um texto de humor que teve boas repercussões foi numa altura em que fiz vários workshops de escrita, no último ano da faculdade. Tirei foi Escrita para Teatro com a Luísa Costa Gomes, que é uma professora muito dura, daquelas que temos de conquistar. Tínhamos de escrever uma peça de teatro no final e eu escrevi uma comédia, estava cheia de medo. Era sobre três assaltantes que estavam a planear um assalto e se escondem na cave da casa de um deles e aparece a mãe, que é uma senhora superfofinha – aí está a mãe, acho que todos os comediantes têm mummy issues. Mas correu bem. Ela teve uma reacção muito boa, tanto que me recomendou ao Nuno Artur Silva, das Produções Fictícias.

Diz que este “Escrever para Comédia” serve para colmatar uma falha no nosso mercado. Ainda estamos muito atrás no que toca ao humor?

Acho que é uma questão de proporção. Somos mais pequenos, só conseguimos fazer coisas para o nosso mercado, a maior parte dos comediantes nem para o Brasil consegue ir com muita facilidade. Depois, obviamente que se pode pensar nas questões sociológicas, que tivemos uma ditadura, ainda somos conhecidos como um país de brandos costumes. Ainda assim acho que as coisas estão a mudar bastante. Mas devo admitir que grande parte das minhas referências ainda são estrangeiras, porque acho que distancia mais. Com um exemplo do John Stewart acho que te consegues concentrar mais na estrutura do que se for com o Herman, que começas a pensar se gostas ou não gostas, o que costumavas ver. Queria afastar-me desse universo. Mas o humor tem crescido a um ritmo vertiginoso, às vezes até cresce de mais. Há alturas que há um boom muito grande de pessoas e depois o tempo acaba por separar o trigo do joio.

As séries são uma grande referência. A televisão é bom instrumento de trabalho?

Hoje em dia é muito pouco sexy dizer-se que se vê televisão: “Ah eu nem tenho televisão, só leio livros e oiço rádio enquanto bebo um copo de vinho tinto.” Eu vejo imensa televisão, boa, má, muitas séries. Vejo os canais tipo TLC, que têm os concursos de beleza das miúdas de quatro anos e têm programas de pessoas obesas. Tenho mesmo um certo fascínio pela maneira como funciona o produto televisivo. É uma coisa que me dá gozo desmontar. Sou muito fã do Goucha, as pessoas acham sempre que estou a gozar mas não estou.

E porquê?

Acho aquilo genuinamente bem feito, apesar de eu não ser o target. O principal problema da nossa televisão é a variedade. Não me chateia que existam programas que não são para mim nem para o meu gosto, chateia-me não haver escolha. As grelhas dos canais arriscam muito pouco. Não me chateia que haja muitas telenovelas, mas que não haja uma única sitcom. Acho que por termos uma televisão que é muito pouco variada e que toma muitos atalhos preguiçosos, metemos na cabeça que toda a televisão comercial é má. Acho que não. Acho que fazer boa televisão comercial é difícil e o programa da manhã do Goucha e da Cristina é bem feito, não é a despachar, eles têm um bom à-vontade. Acho que eles arriscam mais do que outra programação dita mais erudita. Acho que é difícil fazer boa televisão, seja uma série mais para um nicho seja um programa mais popular.

É uma forma de se inspirar?

Toda aquela coisa do não estudes com a televisão ligada, eu sempre fiz assim. Hoje em dia mesmo quando estou a trabalhar a TV está ligada. Foi uma coisa que me preparou para o mercado de trabalho, sou capaz de escrever quando está toda uma redacção aos berros.

Como é um dia normal de trabalho?

Não tenho propriamente um ritmo, porque há dias em que tenho muita coisa para entregar e outros em que não tenho nenhuma. E trabalho muito em casa, mas também no escritório do canal Q das Produções Fictícias. Não posso estar muito tempo em casa, isso tolda-me a criatividade, sinto que tenho de estar ao pé de pessoas que dizem disparates como eu. O meu dia-a-dia não tem grande molde, felizmente para a minha sanidade mental. Os meus domingos são a olhar para o puzzle da semana e a ver como o vou organizar.

Já escreveu para outros formatos na televisão tão diferentes como o “Inspector Max”.

Gosto da esquizofrenia inerente a esta profissão. Era uma coisa que me atraía no jornalismo, saber um bocadinho de tudo e não ser especialista em nada. Todos os dias tens o desafio diferente, hoje tens de saber de balística porque tens um episódio de crime para escrever e agora tem de ser sobre economia por isso tens de te pôr a par do Memorando da troika. Há pessoas que gostam de se especializar, a mim dá-me gozo o desafio.

E os bloqueios, nunca a atormentam?

Costumo dizer que quando temos prazos não nos podemos dar ao luxo de ter bloqueios. O máximo que acontece, e isso acho que acontece a qualquer pessoa desta área, é que já entreguei coisas das quais não me orgulho. Mas quem tem prazos habitua-se. E as técnicas ajudam, ter aquilo sistematizado, o “quebrar em caso de emergência”.

Houve algum momento em que percebesse que a comédia era o caminho?

Decidi que queria ser jornalista tinha nove anos, porque era obcecada por uma série chamada “Murphy Brown”. Ou seja, as pistas já estavam lá, claro que olhando para trás o que me fascinava era a lógica de comédia e de sitcom e não propriamente trabalhar numa redacção, até porque obviamente que não são iguais. Acho que isso sempre esteve lá, porque as coisas que me puxavam para o jornalismo são muito semelhantes às que me puxam para o guionismo. Mas a certa altura, quando estava a estudar Jornalismo, percebi que queria ter uma liberdade de escrita que ali não tens sempre. O que me apetecia escrever em termos de estilo não era bem o que podia fazer no jornalismo.

Entre piadas, há algum tema que seja proibido?

Acontece-me ficar saturada de certas coisas. Não gosto de fazer piadas com a Maddie, o José Castelo Branco, já estou farta, já toda a gente fez. Não há propriamente o “não faço piadas com cancro, com o Holocausto”. É a saturação de certos temas, não quero ir por aí e bocejo quando os outros o fazem. A minha regra é: se tem graça, bora lá.

Qual a pior piada que já ouviu até hoje?

Tenho algum problema com a moda do humor negro. Gosto, mas é estupidamente difícil de fazer. Chateia-me quando oiço ou vejo nas redes sociais humor negro mal feito. Se querem fazer uma piada sobre deficientes, façam, mas tem de ter muita graça. Por exemplo, não tenho uma educação católica mas não tenho pachorra para piada sobre pedofilia na Igreja. Roça mesmo o preguiçoso.

Voltamos às redes sociais. São uma maneira de democratizar o humor?

Vejo coisas escritas nas redes sociais com muita graça por pessoas que não são profissionais. E acho que os profissionais ainda estão a aprender a lidar com isso. As redes envelhecem os temas muito mais depressa. Se for escrever um texto de manhã, gravar ao almoço e vai para o ar à noite, se for um tema muito badalado, já foram feitas não sei quantas piadas durante o dia. A democratização é boa, acho isso óptimo e tem de pôr os comediantes muito mais em sentido.

E a melhor reacção a uma piada que já presenciou, qual foi?

Gosto quando faço rir pessoas que regra geral são mal-encaradas. Por exemplo a nossa equipa técnica lá do canal. Às vezes estão mesmo cansados, trabalham muitas horas e já estão muito habituados a nós. E quando consigo fazer um dos nossos câmaras mais mal-encarados rir, isso dá-me gozo.

Escrever não é assim tão glamoroso, realça várias vezes no livro.

Acho que as pessoas não têm noção do trabalho que dá, têm muito pouca pachorra. Por exemplo, na tragédia não te cabe na cabeça que tenhas uma capital de um país errada, mas na comédia pensa-se que pode ser uma piada. Não pode. Têm ideia que uma pessoa está a escrever e que se está a rir, não está. Quando fazes cócegas a ti própria também não te ris.

Também fala da sua mãe a certa altura. A família e os amigos dão muito feedback?

Curiosamente, não. Faço isto há muito tempo. Comecei a trabalhar nesta área logo a seguir à faculdade, a maior parte das pessoas está habituada. Os meus amigos e a minha família não são meus groupies. A minha mãe às vezes tenta ajudar. Faço uns inquéritos falsos no “Inimigo Público”, em que tenho que inventar os nomes das pessoas, e a última dela é que tem uma amiga que se chama Idalécia e quer muito que ponha o nome dela. Pede-me para eu avisar para depois ela avisar a senhora.

Há alguma coisa que a faça sempre rir?

Gosto de vários tipos diferentes, não há nada que diga: “Nunca me riria disto.” Mas, por exemplo, acho que quem diz que só se ri de humor inteligente e que nunca se riu de uma piada sobre puns está a mentir.