Márcia. “O meu público não vem impingido pela rádio, gosta da música”


Envolta na sua voz de seda, Márcia passou dos pequenos passos do EP e o primeiro disco “Dá” para um casulo de conforto e maturidade. Esta protecção vem da boa nova da maternidade, uma filha segura em casa, longe dos desconfortos da crise portuguesa. Apesar deste refúgio, a vontade de exposição musical ainda é a…


Envolta na sua voz de seda, Márcia passou dos pequenos passos do EP e o primeiro disco “Dá” para um casulo de conforto e maturidade. Esta protecção vem da boa nova da maternidade, uma filha segura em casa, longe dos desconfortos da crise portuguesa. Apesar deste refúgio, a vontade de exposição musical ainda é a mesma, revelando a sua vida impressa nas letras entre insónias e desmazelos. O pedal steel é a nova almofada de toda a música, empregue pelas mãos do marido e produtor. O “Casulo” de Márcia já está nas lojas e pronto para se revelar amanhã, no Cinema São Jorge.

 

O “Casulo” é o esconderijo confortável onde vive a sua música?

Este disco foi feito com mais maturidade, coerência e tempo que o “Dá”. O “Casulo” serve um pouco de cápsula protectora ou refúgio. Este ano e meio que demorei a compor o disco coincidiu com o nascimento da minha filha e senti uma grande necessidade de a proteger da realidade que se passa em Portugal. Criei um espaço de conforto através destas músicas.

No “Dá” estava acompanhada pelos Julie and The Carjackers e Walter Benjamin. Quem a acompanhou desta vez?

O Joca (Julie and The Carjackers) ainda está na bateria; nos arranjos, em vez do Walter, tive o meu marido, Filipe C. Monteiro. Ele produziu todo o disco e tocou o pedal steel, que faz paisagem sonora em quase todas as músicas. 

O casulo dos amigos e família é a única forma de trabalhar?

Não é que esteja completamente fechada nesse conceito, mas é uma forma de resistência ao mau feeling que se anda a propagar. Estar rodeada de família e amigos é uma forma de aproveitar as coisas boas da vida.

É uma forma confortável de fazer música?

Eu nunca posso sentir obrigação em trabalhar, mas sim de viver, e não consigo viver pressionada. Não tenho obrigação de gravar um disco, mas sinto que tenho coisas a dar ao mundo. Gostava de poder dar alguma luz e conforto às pessoas ou de ajudar a encontrar um sítio confortável com a música. Se calhar passa tudo um bocado por fugir.

Depois de partilhar uma música no disco de Samuel Úria, ele aparece aqui em “Menina”. Foi um toma lá dá cá?

Eu admiro genuinamente o Samuel e é muito fácil trabalhar com ele. A canção “Menina” relaciona-se com um concerto que fizemos juntos no Maxime, em 2009. Desde que conheci o Samuel que ele me empurra para a frente. Sempre fui muito tímida para subir ao palco e ele foi das pessoas que me incentivou a combater isso.

Este disco parece mais equilibrado que o “Dá”, foi uma estratégia propositada?

No primeiro disco não tinha grande noção de arranjo, tinha estudado jazz e achei que não queria um disco homogéneo. Neste disco já não existe essa mistura, optei por uma perspectiva contemplativa e uma disposição de viagem. Hoje em dia quase que não existe tempo para ouvir música e é importante que exista sempre algum escape.

O vídeo de “Deixa-me Ir” começa com o ruído de fundo que agora ouvimos 24 horas. Esta música e disco é uma fuga deste ruído?

A relação com os indignados e o FMI é  mérito do realizador Miguel Gonçalves Mendes. O Miguel  sente uma grande angústia com o que se passa em Portugal. Eu percebo que ele não queira fazer um vídeo colorido para uma musiquinha.

Pessoalmente, a Márcia enquadra-se entre os indignados?

Sou muito atormentada e indignada, mas aprendi que tens de continuar a viver. Existe muito ruído e comentadores políticos a mais e por isso temos a ilusão que estamos a fazer alguma coisa. Eu admito que normalmente jogo à defesa, mas também sei atacar. 

No “Deixa-me Ir” fala em “Viver da tua voz”. Qual foi a segunda opção a compor canções?

Cheguei a fazer Belas Artes com o objectivo de ser pintora. Depois passei ao estudo de documentário e realmente achei que ia ser documentarista. Fiz um estágio em Barcelona e nessa altura criei uma página de MySpace para me divertir. Acabei por perceber que não estava a gostar do estágio e em contrapartida, o MySpace estava cheio de comentários. Voltei para Portugal com intenção de conhecer o JP Simões, o B Fachada e a FlorCaveira. Deus escreveu direito por linhas tortas.

Essa geração serviu de grande influência para a música?

Na escrita nem por isso, porque em Barcelona já tinha um punhado de canções em português. “A Pele que há em mim”, por exemplo, é anterior ao estágio. Mas essa geração deu-me um grande ânimo para os conhecer. Lembro-me de estar no Verão a descer para a Arrifana e convencer os meus amigos que ia conhecer o B Fachada. Estava com uma grande panca.

E como o conhece?

De uma forma muito estúpida. Num dia de nuvens na Arrifana, subimos para a Zambujeira do Mar e conheci-o na praia. Agora somos muito amigos. 

Em “Camadas” canta “O que move uma moça são os sonhos de criança”. Que sonhos tinha?

Ser mãe era o meu grande sonho, um desejo um bocado estranho para uma criança. Mas agora quero passear no campo e estar com os amigos. Na minha opinião, cada um devia fazer a sua política e a minha passa por manter a calma e segredo em casa.

No “Dá” sofria de “Insónias”. As insónias ainda são as mesmas?

Neste disco a “Hora Incerta” também é uma insónia. Existem noites que não consigo dormir, por coisas que não fiz ou não disse. Agora passo as insónias a cantar canções de embalar. Adorava fazer um disco com essas canções para bebés. Já estou habituada a receber mensagens de pessoas a dizer que os seus filhos adormecem a ouvir Márcia.

As canções mais intimistas vão resultar ao vivo?

Espero que não se perca nada ao vivo. No São Jorge [amanhã] vou reproduzir todos os arranjos iguais ao disco.

O conceito do casulo não colide com um concerto e uma exposição ao público?

Essa é a minha eterna angústia, sofro de timidez de palco. Tenho sempre de fazer um grande trabalho para me lembrar do público como pessoas e não como massa negra. O meu público não vem impingido pela rádio, são pessoas que gostam da música. Acho que esta contradição é uma eterna questão que nunca me vai passar.

A honestidade é a postura ideal para compor e cantar?

Sou sempre autobiográfica. A cantar entre amigos consigo brincar, mas não gosto de cantar uma coisa que não seja minha. Não vivo luxuosamente, mas tenho um grande luxo em fazer o que quero. Para fazer um disco tem de sair das entranhas, apesar de querer ao mesmo tempo guardar a minha privacidade. Este é o meu sacrifício, em prol do bem que a música pode trazer a mim e ao público.

Quando a sua filha tiver idade para compreender o que canta, qual é a primeira música de Márcia que lhe vai mostrar?

“Para quem quer”, para lhe dar força, que escrevi depois de ver uma senhora a cantar entre os escombros do terramoto do Haiti. Neste disco podia ser o “Desmazelo” e “Decanto”. Sou muito esta angústia do tormento e a manhã de frio que tens de saber aceitar.