Maria de Lurdes Rodrigues. “Qualquer avaliação terá a oposição feroz de sindicatos e professores”


Maria de Lurdes Rodrigues está de partida da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) para mergulhar nas políticas públicas para a reforma do Estado. Juntamente com Pedro Adão e Silva, lançou ontem um livro que resultou do Fórum sobre a mesma temática e reúne os vários contributos dos que participaram no evento. Confessa que encontrou…


Maria de Lurdes Rodrigues está de partida da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) para mergulhar nas políticas públicas para a reforma do Estado. Juntamente com Pedro Adão e Silva, lançou ontem um livro que resultou do Fórum sobre a mesma temática e reúne os vários contributos dos que participaram no evento. Confessa que encontrou alguns problemas financeiros por resolver na FLAD, tendo renegociado toda a carteira dc investimentos no sentido de fazer com que a fundação volte a ter rendimentos compatíveis com a sua actividade.

 

Viu a proposta de reforma do Estado deste governo?

É um guião da reforma do Estado, um conjunto de ideias, algumas bastante dispersas. Mas prefiro falar do que estou a fazer. Procurámos sobretudo recolher informação e conhecimento, o que já sabemos sobre as políticas que foram empreendidas, as medidas ou programas de reforma do Estado anteriores, no sentido de as podermos avaliar e retirar conclusões sobre as medidas que já foram implementadas.

Como é que se faz uma reforma do Estado?

Um qualquer programa de reforma do Estado passa pela procura de compromissos, por processos de negociação, de audição e de auscultação, que são essenciais para garantir a continuidade das políticas. Estamos condenados a uma alternância política e para que essa alternância não comprometa os projectos de médio e longo prazo precisamos absolutamente de construir compromissos e ter uma cultura de negociação para garantir que as decisões que tomamos perduram para além de nós. Depois temos de fazer comparações internacionais. Portugal não existe isolado no mundo, existe em primeiro lugar no contexto da Europa, mas existe também noutros contextos geopolíticos. A nossa relação com o mundo lusófono é muito importante. E é nesse contexto que nos comparamos e definimos objectivos para o nosso país. Não tem sentido pensar o Estado fora desta realidade. Finalmente, há que definir os objectivos estratégicos. Reformar para quê, com que objectivos, que Estado queremos ter. Portugal elegeu como objectivo nos últimos anos ser igual aos melhores países da União Europeia. Qualquer exercício de reforma tem de equacionar essa escolha e tem de o fazer de uma forma explícita, não de uma forma escondida.

Acha que o objectivo de sermos dos melhores países da UE pode cair?

É um objectivo que não tem sido discutido mas várias medidas que têm sido tomadas afastam-nos da Europa. Quando se põe em causa o Serviço Nacional de Saúde, a universalidade do acesso ao ensino, várias instituições que foram construídas e resultaram do esforço de várias gerações de portugueses, estamos a afastar-nos da Europa. Houve muitos portugueses que fizeram muitos sacrifícios para termos o que temos e não pode ser sem uma discussão e sem a assunção plena das responsabilidades que alienamos esse património. O sistema de protecção social não pode ser destruído sem em primeiro lugar haver uma reavaliação e sem a explicitação dos objectivos daquilo que na realidade estamos a fazer.

Defende que primeiro se defina o peso do Estado e depois se parta para as reformas…

São coisas que do ponto de vista temporal não têm de ser sucessivas, podem ser coincidentes. A reforma do Estado apareceu como uma novidade, uma iniciativa deste governo. Mas na realidade está em permanência na agenda política. Vários governos têm feito tentativas para tornar o Estado mais eficiente e eficaz. Penso que o programa Simplex do anterior governo é o exemplo do que foi feito. Podemos dizer que há vários governos que tentaram reformar o Estado ou reformar a administração ou introduzir mudanças no sistema de funcionamento do Estado, sectorialmente considerado, no sentido de haver ganhos de eficiência. Portanto não é um tema novo, é um tema que tem de ser frequentemente revisitado. E as mudanças não se fazem sem conhecimento, avaliação do que já se fez, compromissos e comparações internacionais. Não há necessidade de se inventar a roda, as experiências dos outros países são sempre inspiradoras. E depois, obviamente, existe a questão dos objectivos estratégicos. Que Estado queremos ter e que intervenções devem ser garantidas.

O guião deste governo seguiu essa linha de raciocínio?

Não. Não consensualiza nem há negociação. É um guião da iniciativa do governo, feito de uma forma totalmente fechada, sem consideração pelos outros partidos, pelos agentes, pelos outros actores sociais, pelos sindicatos. E é um trabalho que ignora o legado histórico e o caminho que o país já percorreu, sem qualquer avaliação dos resultados obtidos.

Mas o balanço dos resultados nunca foi feito pelos governos anteriores, pelo menos de uma forma global.

Foi feito por vários governos. Mas muitas vezes é assim que se faz. Na Segurança Social, na educação, na saúde e na justiça, houve muitas medidas tomadas no sentido de haver ganhos de eficiência. O tema da reforma do Estado está em permanência na agenda política. Agora a forma como ultimamente tem sido tratado pode comprometer futuras iniciativas. Quando se olha para os últimos 20 anos de políticas públicas em Portugal, e não vou mais atrás porque não tenho a certeza do que estou a dizer, houve reformas no sentido de tornar o Estado mais eficiente e mais eficaz. As lojas do cidadão criadas nos anos 90, inúmeras iniciativas em diferentes sectores. Agora tenho a maior das desconfianças de que esta visão totalitária do que é o Estado, de procurar resolver todos os problemas ao mesmo tempo, acabará por não resolver problema nenhum. Os problemas têm de ter uma abordagem parcelar, sem se perder a visão global.

Qual é o seu principal legado de uma gestão de três anos à frente da FLAD?

A FLAD é uma instituição com 25 anos, com uma história muito positiva de intervenção no país, de beneficiar instituições públicas e privadas, sobretudo na sua dimensão de relação e cooperação com os EUA. Só que desde 2000, com as crises financeiras mundiais, e por ser uma instituição que vive exclusivamente do rendimento do seu património, tem havido muito mais incerteza e risco. Até aos anos 2000, a instituição viu crescer o seu património, para além de todo o trabalho de apoio às instituições. A partir dessa altura começou a ter grande dificuldade em obter os rendimentos suficientes para assumir os compromissos firmados com várias instituições. Em 2008, o risco de erosão do património ainda foi maior.

Que soluções encontrou para contrariar a depreciação do património da fundação?

Optei por três grandes grupos de decisões: mudei o modelo de gestão do património. Definimos uma política de investimentos aprovada pelo conselho directivo e pelo comité de investimentos que nos permitiu mitigar a incerteza associada à actual crise e reduzir os custos das transacções, invertendo a tendência de perda do capital e de rendimento. Passámos a ter uma gestão passiva, em que a FLAD gere hoje o seu património, tendo rescindido os contratos com dez sociedades gestoras. A segunda decisão foi a flexibilização financeira. A FLAD assumia compromissos de longo prazo com instituições públicas e privadas e adoptámos regras que impedem os contratos plurianuais. Isso protege muito a sustentabilidade da fundação. E depois reduzimos os custos e os encargos fixos para podermos libertar rendimento para a reposição do capital e aumentar a disponibilidade financeira para cumprir a missão da FLAD.

Preferiu concentrar a FLAD no ensino e na língua portuguesa. Em certa medida transportou para a fundação a sua experiência de ministra da Educação. Foi assim?

De modo nenhum. Trata-se da questão da língua como recurso nas relações externas. É a língua no estrangeiro, não é o ensino da língua nas nossas escolas nem o seu desenvolvimento nas universidades. No fundo trata-se de renovar a imagem do país nos EUA através da afirmação da importância da nossa língua. O português é a terceira língua mais falada no mundo, com um valor económico muito elevado, que beneficia de várias situações como o facto de países como o Brasil e Angola, falantes de português, estarem numa situação de grande crescimento. O português beneficia também de ter uma proximidade ao castelhano e de esta última ser igualmente uma língua muito difundida. Isso transforma a língua portuguesa num recurso muitíssimo importante na afirmação do nosso país. Portugal pode de facto constituir- -se aos olhos do mundo como uma plataforma de acesso a várias regiões, que vão da China à América Latina, passando por África. E a questão é política. Ou queremos ter um papel de afirmação da língua portuguesa ou não. O país é de facto a origem da língua, mas somos apenas 10 milhões de falantes. No Brasil são 250 milhões. Portugal pode não ganhar em número mas em qualidade. A FLAD pode dar aqui um apoio aos professores que ensinam Português nos EUA e atrair estudantes norte-americanos para o nosso país usando a língua como um grande recurso.

O que a impediu até hoje de levar por diante o seu projecto de abrir o Instituto Camões em Nova Iorque?

Não impediu. É um processo que está em curso para o qual ainda não houve tempo, com as sucessivas mudanças de governo, mas que pode ser retomado em qualquer altura. Não é um projecto da FLAD mas sim do Instituto Camões. É esta instituição que representa Portugal no estrangeiro e o nosso projecto era apoiar o instituto na abertura de uma delegação nos EUA, talvez em Nova Iorque.

Que outros projectos gostaria de ter concretizado?

O do Instituto Camões e de ver os resultados do programa Study in Portugal, que tem um imenso caminho para fazer e pode beneficiar muitíssimo as nossas universidades. Mas nada disso é crítico. São programas que estão em curso e que se podem vir a concretizar por outra pessoa. Tenho a certeza que se os projectos tiverem valor em si um dia realizar-se- -ão.

Encontrou uma carteira de investimentos na FLAD cheia de problemas e riscos. O seu antecessor, Rui Machete, deixou a casa ameaçada?

Não posso dizer isso. Encontrei problemas que tinham solução e concretizei essas soluções. Os tempos que vivemos desde 2000 são de incerteza. E não tivemos problemas diferentes de outras instituições que vivem exclusivamente dos investimentos financeiros. Se o Dr. Rui Machete tivesse mais tempo provavelmente também as teria encontrado.

Uma das aplicações financeiras da FLAD era no BPP. O problema já está resolvido?

Este ano conseguimos recuperar cerca de um milhão de euros de um investimento que estava no BPP Caimão, o que representou 75% do total investido. O acordo a que chegámos acabou por beneficiar mais de 50 investidores. Foi uma negociação que envolveu a FLAD, a comissão liquidatária do BPP Caimão e a PriceWaterhouse, como administradora da falência do banco.

Passou de uma relação difícil da FLAD com a embaixada dos EUA para um entendimento que alguns até acharam excessivo. Passou-se do 8 ao 80?

A FLAD resulta da cooperação de Portugal com os Estados Unidos. Parecia- -me importante que se estabelecesse uma convergência e que se procurassem os compromissos de que falo. Havia um passado cheio de memórias negativas que era preciso melhorar. Tive a sorte de ter um embaixador novo e uma nova presidência na FLAD. Foi possível resolver os equívocos e problemas que sucederam no passado. A embaixada valorizou a redução dos custos de estrutura, a forma como o património está a ser gerido e algumas das actividades em que nos envolvemos. O novo embaixador vai herdar um dossiê que contém elementos positivos sobre a FLAD e sobre as instituições portuguesas.

Os Açores – a Base das Lajes – estão na origem da FLAD. A fundação não devia ter um papel mais activo em relação aos Açores?

Quando cheguei, uma das primeiras medidas que tomámos no conselho executivo, com o apoio do Mário Mesquita, foi a criação de um programa orientado para os Açores, embora já financiássemos projectos na região. Mas estávamos perante um problema de natureza simbólica, era importante que a FLAD contemplasse uma linha de financiamento designada por Açores e que orçamentasse os recursos financeiros para apoiar iniciativas que fossem apresentadas pelas instituições açorianas. O Dr. Mário Mesquita, indicado pelo governo dos Açores, fez aqui um trabalho importante para incitar as instituições açorianas a apresentarem programas. E foram-se aumentando as subvenções para aquelas instituições. Não é um parente pobre porque não há nenhuma outra região do país com o mesmo papel programático.

O seu sucessor é um estudioso da política norte-americana. O que pensa de Vasco Rato? Já falou com ele?

Não fiquei com ideia nenhuma. Estou muito ocupada com a passagem dos dossiês mais críticos que estão para decisão e que o novo conselho de administração deve ponderar. O Dr. Vasco Rato tem todas as condições para fazer um bom trabalho na FLAD. É um académico, tem trabalho feito e publicado na área das relações internacionais e tem uma sensibilidade para as relações com os Estados Unidos que certamente será muito importante na condução dos destinos da FLAD.

A esta distância, o que retira da sua experiencia como ministra da Educação?

Foi a experiência política mais importante que vivi até hoje em termos de responsabilidade e exigência. As decisões que tomamos quando somos ministros têm impacto na vida de muitas pessoas. Foi para mim uma oportunidade importante para compreender o país e para compreender o sistema de ensino e as relações entre a política, a universidade e o conhecimento e a distância que vai das ideias à sua concretização. Agora olho para esse período com serenidade porque, em consciência, tomei decisões que beneficiaram milhares de alunos e milhares de portugueses na sua vida quotidiana. Quando se generaliza o ensino profissional nas escolas secundárias, quando se constroem 400 novos centros escolares e se encerram todas as escolas com menos de dez alunos, quando se recuperam e modernizam as escolas secundárias que estavam há anos numa degradação insuportável, quando se criam novas oportunidades de formação e de regresso às escolas para milhares de adultos, só se pode ter uma atitude de serenidade. Aceitei também o cargo para contribuir para resolver o grave problema da formação de adultos em Portugal e que considero ser uma dívida que as actuais gerações têm para com as gerações do passado e que não está saldada nem resolvida. Em todos os estudos sobre as condições de trabalho dos portugueses, inclusive os que fiz, sei o quanto o défice de qualificações é um entrave ao desenvolvimento. As qualificações surgiam como uma variável decisiva.

Adequou o seu know-how em políticas públicas ao seu papel de ministra?

É absolutamente indispensável. Não se faz política só com intuição ou conhecimento político. Fazer política tem de assentar numa base de formação e de conhecimento, numa capacidade de negociação que tem de ser mobilizada todos os dias.

Como correram as negociação com os sindicatos de professores?

É uma área de intervenção difícil porque nos últimos 30 anos os sindicatos dos professores conseguiram construir uma carreira que é totalmente indiferenciada, ao contrário das carreiras de juízes, magistrados, médicos, professores universitários ou enfermeiros, que são diferenciadas e estruturadas, não só do ponto de vista sectorial mas do ponto de vista hierárquico. Dos anos 90 até à actualidade, todo o trabalho dos sindicatos, relativamente bem sucedido, foi para anular e impedir a estratificação e a diferenciação interna. Acabou-se com as diferenças entre os professores do primeiro ciclo e do secundário. Ora qualquer mecanismo de avaliação é diferenciador e terá sempre a oposição feroz dos sindicatos, porque a sua força vem do facto de a profissão ser indiferenciada. Os próprios professores só aceitam ser distinguidos pelo tempo de serviço e pela nota final de curso.

Noutros países a avaliação é uma prática corrente…

Chegados ao ponto em que chegámos, deve-se envolver as próprias universidades e instituições de formação dos professores. Provavelmente tem de se ir à raiz do problema e ser aí um pouco mais exigentes. A avaliação é um instrumento normal e importante e, estou convencida, está hoje na agenda de todos os governos. O problema é a sua concretização.

Acha impossível impor a avaliação de professores em Portugal?

Impossível não será, mas era necessário aprofundar o nosso conhecimento e aprofundar os mecanismos de negociação com os sindicatos, com os conselhos das escolas, com as associações de professores e com as universidades para tentar encontrar uma solução para este problema.

Entre 0 e 10, que nota dá ao actual ministro?

Não dou notas a ministros. Aquilo que tem de ser avaliado são as políticas. Nesse sentido olho com grande preocupação para o que tem sido feito. As políticas de educação são negativas no sentido em que nada constroem, e destroem sem avaliar aquilo que estava a ser feito. Descontinuam, encerram ou concluem sem nenhuma avaliação. Do programa das novas oportunidades, da modernização das escolas, ao plano nacional de leitura e aos planos de recuperação, que eram um instrumento muitíssimo importante para melhorar os resultados escolares. Quando se olha para os dois anos deste governo, vê-se um património de destruição de políticas e, insisto, sem avaliação. Pode sempre chegar-se à conclusão de que o caminho não é correcto mas tem de se arranjar alternativas.

Foi bastante polémica como ministra. Como justifica tanta contestação?

Penso que houve contestação sobretudo na avaliação dos professores. Não tive contestação à introdução do programa de novas oportunidades, não tive contestação à recuperação das escolas, ao fecho de escolas com menos de dez alunos, à introdução do Inglês no primeiro ciclo. Houve um entendimento muito bom com as autarquias, com os directores das escolas para reforçar a sua autonomia. Houve muitas dimensões da política seguidas naquele período que não foram objecto de contestação, a não ser pontual, episódica. O facto de haver hoje milhares de garotos que conhecem inglês no sétimo ano era impensável em 2005.

Como era a sua relação institucional com José Sócrates?

Apoiou-me sempre. Era o mais convicto nas medidas que tomávamos e foi muito corajoso pelo facto de ter grande experiência de governo. Não sendo dessa pasta, acompanhava os problemas de perto há muito tempo. Recordo-me que quando tomámos a decisão da colocação plurianual dos professores me ter dito que era uma exigência de que ele ouvia falar há mais de dez anos. Tinha a percepção de quão velha era a agenda dos problemas da educação e quão difícil era corrigi-los.

Voltaria a ser ministra ou ficou vacinada?

Não é um problema de ficar vacinada ou não. Não conduzo a minha vida nem faço esses planos. São planos de curto prazo e agora estou envolvida na área de consolidação dos programas de políticas públicas no ISCTE.