Raul Karma. Palavras para quê? É um artista português


Domingo, 27 de Setembro de 1964. É dia de ir à bola. Ou talvez não. Nos anos 60, os futebolistas são iguais aos alunos, com férias grandes de três meses. A pré-época começa em Setembro e o campeonato nacional só arranca em meados de Outubro. Repetimo-nos: domingo, 27 de Setembro de 1964. Sem bola, qual…


Domingo, 27 de Setembro de 1964. É dia de ir à bola. Ou talvez não. Nos anos 60, os futebolistas são iguais aos alunos, com férias grandes de três meses. A pré-época começa em Setembro e o campeonato nacional só arranca em meados de Outubro.

Repetimo-nos: domingo, 27 de Setembro de 1964. Sem bola, qual é o evento do dia? No Porto, desconhecemos. No Algarve, também. No interior, idem idem aspas aspas. Em Lisboa, alto lá e pára o baile. Um senhor há com desejo de aparecer nas notícias. Chama-se Raul Januário Júnior. Aliás, Palhaço Raulito. Aliás, Raul Karma. As pessoas têm-no em alta consideração. Afinal, é o primeiro português a ganhar um concurso internacional de magia. A vitória acontece em Barcelona, mas Raul Karma não se considera um mágico, e sim um mentalista. Então? Todas as noites, no restaurante regional Chicote, à Praça do Areeiro, lê mentes alheias “deliciando e intrigando a mais esclarecida das assistências”, assegura o livro “LX60” numa transcrição da revista “Flama”. O homem de 37 anos de idade é uma figura incontornável da vida social lisboeta. Sem futebol nem totobola, é ele quem transforma os domingos num reboliço sem fim.

Às tantas, Matias Celorico Palma, proprietário do Chicote, promove uma acção de Raul Karma, uma “experiência pública de condução com os olhos completamente vendados” da Praça Duque de Saldanha até à Praça do Areeiro, junto ao restaurante. É um percurso de 2,2 quilómetros. Num país muito virado para si mesmo e coberto de cinzentismo, imagine-se a inquietação popular a fazer contagem decrescente para o tal domingo, 27 de Setembro. Quando chega o dia, é uma festa extraordinária. O horário da partida está estabelecido: 18h30.

Raul Karma aparece trajado a rigor: galhardetes e insígnias no fato, pêra impecavelmente aparada e saco de pano sobre a cabeça. Uma figura, insistimos. Está ao volante de um descapotável Haflinger, um todo-o-terreno austríaco gentilmente cedido para o efeito pela Auto-Portuguesa Lda., com a matrícula II-61-66.

Senhoras e senhores, preparem-se para o espectáculo. A sua mulher, Bett (aliás Cidália Moreira, então medium, mais tarde fadista cigana de renome), acompanha-o nesta aventura. De sucesso, acrescentamos. Raul Karma conduz exemplarmente o carro sem se equivocar uma única vez. Mais uma vez, seguimo-nos pelo “LX60”: “Karma não se desvia um centímetro da rota, apesar do tráfego intenso de um final de domingo.” A chegada, essa, “é aplaudida por meia Lisboa que, indiferente aos chuviscos, quis comprovar estar perante o melhor mago do mundo”.

Na sequência desta façanha imperdível, Raul Karma (nascido na Nazaré e criado na Travessa das Mónicas, na Graça, pelos pais Maria do Carmo, uma dona de casa, e Raul Januário, um guarda-fiscal) acrescenta mais um feito à sua notável carreira. Anos antes, lá para os fifties, ainda não há Professor Karma, só o Palhaço Raulito, que deambula por Lisboa em circos montados à pressa aqui, ali e acolá. E também encanta a plateia, naturalmente. Há quem se lembre perfeitamente da rábula do pato perito na tabuada: “Toma atenção: quanto soma dois mais dois?”, e o pato grasnava “quá quá quá quá”. Posto isto, vai buscar um longo serrote de cortar madeira, um arco de violino e enche a sala de música. Celestial, diz quem o ouve. Em 2001, num outro domingo sem bola, Raul Januário Júnior deixa-nos. A nós todos mais à mulher, Cidália Moreira. Conta 74 anos. Bem preenchidos, naturalmente. Seja como Palhaço Raulito, seja como Professor Karma ou seja como ele próprio, Raul Januário Júnior, trabalhador dos CTT desde tenra idade. À conta de momentos inapagáveis, mágicos até. Não acredita? Então vá ao Instituto Cosmopsicobiológico Professor Raul Karma, na Avenida Defensores de Chaves, 54 – 3.º direito…