Berta Nunes. Missão de vida: servir de exemplo a quem vem a seguir


Quando os colegas se digladiavam por um lugar no palco principal de um qualquer hospital de cidade, ela, melhor aluna do país no ano em que terminou o curso de Medicina, fez as malas e rumou ao centro de saúde de Alfândega da Fé. A escolha do curso foi mais obra do acaso que outra…


Quando os colegas se digladiavam por um lugar no palco principal de um qualquer hospital de cidade, ela, melhor aluna do país no ano em que terminou o curso de Medicina, fez as malas e rumou ao centro de saúde de Alfândega da Fé.

A escolha do curso foi mais obra do acaso que outra coisa. No final do liceu havia que optar pelo caminho a seguir. Escolheu o lugar onde ia estar mais perto das pessoas, da comunidade. “Não gostava de viver na cidade, nasci e vivi numa aldeia praticamente até aos 18 anos, sempre gostei de viver lá.” Lá, Santa Maria de Lamas, distrito de Aveiro.

Na família não havia médicos. Na adolescência havia, sim, a religião. Sobretudo por influência da mãe. Missionária foi vocação que sonhou seguir quando fosse grande, mas a juventude fê-la chocar de frente com os desígnios de Deus. Questionou-se, pôs em causa a razão das coisas simples da vida e criou alguma distância ao credo. Ficou a “espiritualidade” e a vontade de ajudar. “Ajudar os mais fracos, os mais pobres, é disso que me lembro na forma de viver a religião.”

A ida para Alfândega da Fé foi como um regresso ao passado, uma viagem de volta às memórias de quando subia às árvores, na quinta da avó materna, em Grijó, Gaia. Fez-se médica e durante quase 25 anos recebeu os seus doentes no gabinete do centro de saúde. Foi a sua escola de vida. “Crescemos muito como pessoas porque percebemos o ser humano em várias dimensões e percebemos que cada pessoa tem a sua maneira de ver as coisas.” Foi sempre isso que a moveu: conhecer o outro, perceber que há tantas maneiras de interpretar a realidade como pessoas no mundo.

Mas houve alturas em que o peso lhe pareceu demasiado. As histórias que lhe contavam olhos nos olhos não ficavam dentro de portas do gabinete no final do dia. Mais que ouvir, Berta Nunes dedicou-se a escutar os doentes. Pelo caminho conheceu “o valor da tolerância” e tomou para si o princípio fundamental de “não pensar que somos donos da verdade”.

Não há sinais de que a política tenha feito parte do percurso de nenhum parente próximo. Ela própria também nunca esperou que essa responsabilidade cruzasse o seu caminho. A consciência política só se foi desenvolvendo a partir da faculdade. O momento de ruptura que o país vivia também ajudou a alargar horizontes. Entrou para a faculdade, no Porto, em 1974. O associativismo estudantil lançou a semente, depois veio o trabalho voluntário com populações desfavorecidas, e nesses anos Berta Nunes foi descobrindo um novo sentido para o desejo que tinha de ajudar.

Nesses anos de descoberta política colaborou com um grupo marxista-leninista no “serviço ao ensino público”. Mas o “centralismo democrático” acabou com a ilusão de que o caminho seria por ali e afastou-se.

Mais tarde, quando os apelos à sua volta para que se lançasse à Câmara de Alfândega se foram repetindo, sentiu que tinha de “dar uma resposta”. Avançou. Perdeu à primeira tentativa, por poucos votos. À segunda conquistou o lugar. A primeira médica de família do país a concluir um doutoramento era a primeira presidente de câmara de uma autarquia de Trás-os-Montes. Não suporta rotinas, não vira as costas a um desafio e quer guardar para si um lugar na história. “Vale mais um exemplo que mil discursos. Ter tomado estas decisões e aceitado estes desafios foi em parte para servir de exemplo. É muito importante para uma mulher que queira seguir determinado caminho ter um exemplo, um modelo.”