Walker Evans catapultou-a para a eternidade em fotografias magníficas. Freud (que na noite em que a conheceu mastigou um ramo de orquídeas roxas) retratou-a em vários óleos, Lowell morreu num táxi a caminho da casa da primeira mulher, a escritora Elizabeth Hardwick, depois de Caroline o ter deixado. Levava com ele um retrato de Blackwood pintado por Freud. Se um a imortalizou na pintura, o outro imortalizou-a na poesia. Blackwood é a sereia a quem Lowell se refere em The Dolphin. “Uma sereia que chora rum branco indistinguível das lágrimas. Mata mais garrafas do que o oceano afunda, e serve em salmoura os ossos dos amantes sem fôlego…”
Este livro chegou a ser pré-selecionado ao Booker Prize em 1977, mas, devido ao seu carácter demasiado autobiográfico, foi desconsiderado por Philip Larkin, presidente do júri nesse ano.
Oriunda de uma família rica e aristocrática anglo-irlandesa, Caroline Blackwood, herdeira da fortuna Guinness, teve uma vida desregrada, completamente fora da pauta social e moral da sua época. Autora de diversos livros como On the Perimeter, The Last of the Duchess ou Corrigan, A Velha Senhora Webster é o único traduzido para português. Publicado pela Minotauro com tradução de Eugénia Antunes e introdução de Honor Moore, este romance narra a história familiar de uma jovem rapariga de 14 anos, que, sofrendo de uma grave anemia, é mandada para a casa da sua bisavó dois anos depois da guerra acabar. A casa e esta matriarca são dotadas das mesmas características. Ambas são soturnas, bafientas, austeras, intimidantes, inóspitas e gélidas. A casa e esta bisavó estão desde o início até ao fim hermeticamente encerradas sobre si mesmas, mas, por incrível que pareça, o leitor nunca se sente impedido de cirandar nos corredores intermináveis e nos salões imensos e húmidos deste palacete senhorial junto da praia de Brighton. E quando chega ao ponto de o leitor estar prestes a abominar esta velha e carrancuda mulher, percebe que, por detrás da sua fachada tão dura, há um sem fim de desgostos alcatifados pela vergonha, pela tristeza e pela desonra.
Tudo neste enredo parece fruto de uma natureza punitiva, embrutecedora, mas Blackwood consegue tingir com subtileza e graça todos esses desgostos que pairam e se abateram há demasiado tempo sobre os Webster.
Enquanto a narradora passa os dois meses na companhia da bisavó, faz de tudo para tentar perceber o carácter e os laços que o seu pai, que morreu a combater nas selvas da Birmânia, mantinha com esta mulher tão fria e desinteressante. A jovem não entende como é que o pai era capaz de passar ali todas as suas férias e todos os tempos livres. Não entende como é que um homem novo seria tolerante a um ambiente tão cinzento e cortante. Vai ser um amigo do seu progenitor quem a irá pôr ao corrente dessas explicações. Esse amigo chama-se Tommy Redcliffe. É ele quem lhe vai contar que o pai sofria demasiado por ter uma mãe louca, e que aquela velha mulher para ele representava tudo o que sempre lhe tinha faltado: ordem, estabilidade e paz. A mãe do pai, a avó Dunmartin, pouco depois de ter casado ensandeceu. No batizado do irmão da narradora, tentou matá-lo por acreditar que o bebé era uma alma malévola. Esta avó enlouquecida vivia também enclausurada numa casa senhorial igualmente soturna. Ocupava-se todo o tempo a recortar sentada no chão do quarto imagens coloridas de fadas, magos, bruxas e duendes da sua infinita coleção de livros infantis. Acreditava que era uma fada, e por isso comportava-se estranhamente como se obedecesse a ordens de entidades invisíveis. Andava sempre descalça, de vestidos brancos e transparentes, e nas costas usava um longo xaile que se ia prendendo e ondulando, simulando propositadamente as asas de uma fada.
“A minha avó desenvolvera um interesse obsessivo pelo que apelidava de ‘pessoas pequeninas’. Quando afirmara pela primeira vez que via essas pessoas, a família achou que ela estava a brincar. Imaginavam que, como inglesa que se estabelecera na Irlanda do Norte, estaria, de uma maneira absurda e fantasiosa, a tentar adaptar-se às superstições irlandesas. Em breve ficou claro que a sua crença nas forças sobrenaturais se tinha tornado uma verdadeira fixação, pois tentava converter toda a gente às suas crenças e tornava-se ríspida e hostil se achasse que o seu público a tratava com condescendência. Afirmava ser capaz de entender a linguagem das fadas, que lhe enviavam mensagens constantes e que era importante dar apenas ouvidos ás instruções das fadas boas já que elas poderiam ajudar-nos a evitar os terríveis feitiços que os demónios nos deitavam. (…) O que toda a gente achava arrepiante era o facto de ela mesma ter começado a parecer-se com as fadas que se punham no topo das árvores de Natal. Tinha a mesma expressão impassível e fixa, e o mesmo ar intemporal em resultado do qual não parecia nem uma criança nem uma mulher.”
A escritora inglesa Jenny Diski vê toda a obra de Caroline Blackwood como um conjunto de contos de fadas sombrios. “Ela mantém o olho o mais frio que pode, evitando o sentimentalismo como se fosse a própria morte.” Na London Review of Books, considerou os seus romances “estranhos e intrigantes”, mas também “leves, porque, apesar de toda a sua capacidade de olhar para o vazio, jamais lançam luz sobre ele”.
À parte estes familiares estranhos e assustadores e estas casas decrépitas e bolorentas, a narradora tem uma tia que, embora se venha a suicidar, é aparentemente o oposto deles. A tia Lavínia é uma lufada de ar fresco no meio deste conjunto de personagens. É uma mulher sensual, leviana, profundamente hedonista que vive em Londres rodeada de luxo, conforto, diversão e homens. Tinha-se recusado desde sempre a dar-se com o resto da família porque desprezava o modo como viviam.
Embora seja de longe a mais amistosa e divertida de todas, por outro lado por ser a mais “afetuosa, frívola e inquietantemente irreal” é sem dúvida a mais vulcânica e grotesca. E o grotesco em Blakwood está muito próximo do punitivo, ou seja, mesmo dotada de tanta sensualidade e sofisticação, nem mesmo Lavínia é capaz de se ver livre da natureza castradora a que todos os seres desta escritora estão sujeitos.
Dividido em quatro capítulos, há uma atmosfera de caos permanente a alimentar cada circuito narrativo e cada época aqui retratada. A vitoriana, a eduardina, a pré e a pós-guerra. Deste caos permanente não há nenhuma personagem a escapar ilesa. E é precisamente isso que envolve o leitor. Porque todos os personagens testam ao máximo os seus limites. O desespero, a renúncia, a impassividade. Porém, independentemente de tudo, dos seus ideais falhados, das garras da miséria a trepar como giestas bravias os palácios das suas famílias seculares e tradicionais, nunca são vítimas, porque Blackwood, com a sua extraordinária capacidade para decalcar o caricato entre o mais trágico dos cenários, consegue magistralmente resgatá-los de um discurso previsível e salvífico.