Há uma voragem global de promoção da acefalia que mais não é do que a confissão tardia de fracasso individual, comunitário e estatal na concretização dos processos de aprendizagem para a formação de seres humanos, cidadãos e de profissionais com as competências que bastem para, com base em valores e princípios, poderem fazer as suas escolhas e aderir aos compromissos com as regras de funcionamento da vida em comunidade. Sob a capa da esterilização das existências de fenómenos rotulados como perversos pelas novas tendências de higienização social e cultural, para não ferir suscetibilidades atuais à luz de novas leituras sobre o passado, fustigam-se acontecimentos e obras, querendo-as expurgar do alegado mal. A expurga segue a linha da Inquisição, da Censura e uma prática recorrente de não intervir no curso dos processos para depois tentar implodir os resultados, procurando gerar novas realidades. Por enquanto, as expressões mais chocantes dessa deriva estão por outras paragens, pelo Reino Unido, pelos Estados Unidos da América e por regimes totalitaristas assentes no medo, na força e na repressão, receosos da ameaça de seres que pensem pela sua cabeça.
A complacência com uma deriva de estupidificação cívica levou a que não se tivesse apostado mais no pensamento crítico, no pensar em vez de debitar, constituindo-se numa nova epidemia, um campo fértil para o conformismo, a desinformação, a falta de senso e as derivas negativas das sociedades. É sempre mais fácil replicar do que ler, aprofundar, ponderar ou questionar. É mais fácil para os sistemas, para os cidadãos e para os visados pelas aprendizagens, mas não se pode dizer que o quadro geral dos resultados seja positivo como se pode constatar pelos índices de participação cívica, de literacia e de exigência no escrutínio do funcionamento das instituições, das opções políticas e dos rumos que são colocados às comunidades.
É por isso que emergem, com demasiadas indiferenças gerais, as decisões políticas sem pingo de razoabilidade, os comportamentos sem ética republicana e as indecorosas triagens concretizadas por terceiros em relação a opções que deviam de permanecer ao alcance de cada um(a), capacitado(a) para fazer a sua leitura, avaliação, depuração e escolha. A indecorosa filtragem de Roald Dahl, do Casino Royale de Ian Fleming, dos Cinco de Enid Blyton, das histórias de Miss Marple e Poirot de Agatha Christie, decididas pela Harper Collins, e de outras tentativas de expurga da história dos povos ou das construções criativas de seres humanos é mais uma inaceitável expressão de uma preocupante deriva de imposição de um ambiente assético, sem crivo, crítica ou pensamento próprio. Em vez de se formarem os cidadãos para poderem concretizar as triagens necessárias para qualquer ideia, projeto ou iniciativa, formatam-se vivências de chave na mão, em que basta absorver, aceitar sem questionar, de acordo com os padrões civilizacionais validados pelos novos censores de gostos, conteúdos e realidades. Alguém decide por ti e tu ficaste.
Não podes ler Os Cinco, porque tem expressões alegadamente ofensivas.
Não podes ir de comboio porque há reiteradas greves.
Não podes ter justiça porque há reivindicações.
Não podes ter acesso a cuidados de saúde e a serviços públicos previsíveis e em linha com o que pagas de impostos, porque há deslaço, desmazelo e falta de senso.
Não podes viver, sobrevives, porque, mesmo sendo da dita classe média, há muito que te impõem um quadro de indigência, indiferente ao esforço mensal dos pagamentos das contas, em que contribuis com uma carga fiscal como se fosses rico, enquanto assistes a desmandos, inconsistências e inexplicáveis opções políticas.
Alguém decidiu por ti que, podendo por lei, não podes, mas não contentes com os incumprimentos em relação ao básico, há sempre alguém que se balança para novas imposições e triagens. Há sempre alguém que é capaz de afirmar no mesmo horizonte temporal que uma maioria é requentada, a sua liderança está cansada e passados dias que está plena de energia.
A deriva da higienização das desconformidades convive bem com a pobreza, as injustiças, as disfunções do funcionamento do Estado e da sociedade, a guerra, as alterações climáticas e outras alarvidades existenciais, mas o que a preocupa mesmo é que possas ser ofendido por uma expressão dos Cinco, do Poirot ou com uma tourada.
A deriva de promoção da acefalia conta com que cada um continue a ser complacente com essas dinâmicas negativas, que se resigne com as novas censuras, as novas opções sem nexo com as necessidades e com um padrão de funcionamento individual e comunitário que replique, que não questione e quase não exista. Se não nos tivermos de confrontar com a diversidade das criações e da criatividade, da atual e da resultante da história da humanidade, nas diversas latitudes e longitudes, se estivermos apenas para aceder ao que nos servem, sem questionar, estaremos no ponto de equilíbrio pretendido. Estaremos no domínio da inexistência das personalidades e das identidades, em linha com o padrão, acéfalos, asséticos e expurgados das diferenças. Seremos derivados da deriva, uns indiferenciados, bem-mandados. Gente livre, a pensar pela sua cabeça é outra coisa, um desafio de exigência para as aprendizagens e as vivências. É uma necessidade para o presente e para o futuro que teremos, cada vez mais digitalizado, com automatização e inteligência artificial. É dar espaço à inteligência humana, insuperável em muitas dimensões, sensível e diferenciada. É correr com os Torquemadas do nosso tempo.
NOTAS FINAIS
UM GOVERNO A DOIS SISTEMAS. O risco de greve de pilotos da TAP na Páscoa, com evidentes impactos no turismo e no desperdício do investimento realizado pelos contribuintes na companhia, sublinha que, apesar do caso Alexandra Reis, o governo não aprendeu nada com a situação. O acordo com os Pilotos foi validado pelas Infraestruturas, mas aguarda a validação das Finanças. As agendas pessoais continuam a prevalecer sobre o trabalho conjunto, paga o país.
COMICHÃO DE INQUÉRITO DA TAP. Por maior que seja a competência da liderança da comissão parlamentar de inquérito da TAP, os resultados dependem da obtenção da verdade e da sua salvaguarda perante os enviesamentos partidários e os interesses em presença. É que, para distorções, já basta um relatório da IGF com omissões deliberadas e a esquizofrenia de demitir com justa causa quem obteve resultados, de acordo com um plano aprovado por todos, que é desconhecido da generalidade dos acionistas reais: os contribuintes. Teremos verdade ou comichão parlamentar, tudo ao lado.