Tomando como ponto de partida declarações do Diretor Nacional da PJ sobre um alegado “terrorismo judiciário”, mas procurando ir muito para além delas, escrevi aqui, há algumas semanas, sobre o que amiúde me parece ser uma cruzada no sentido da redução de garantias e da musculação do processo penal. A qual, aliás, tem dado frutos ao longo do tempo, seja no campo das Leis, seja no da aplicação do Direito e no da vivência e da representação social do mesmo. E terminei então o texto dizendo que os combates desta cruzada – umas vezes realmente organizada, outras, diria que a maioria, “apenas” fruto do encontro de vontades, ideias, projetos, protagonismos e/ou agendas, e sem prejuízo, claro, das convicções (que as há e são legítimas, embora erradas a meu ver) – se fazem essencialmente através da propaganda. É tempo agora de algumas linhas sobre isso. Dizem os dicionários que propaganda é o ato ou o efeito de propagar ou difundir uma ideia, opinião ou doutrina, costumando também apontar para informação manipulada ou apresentada de forma a predispor o destinatário à adoção de certa posição, opinião, et cetera.
Ora, quanto ao tema que me ocupa neste texto, e tendo de sintetizar, digo que são três os traços mais marcantes da propaganda. Primeiro: bater sempre na mesma tecla, e com recurso a ideias gerais, sem aprofundamento, fundamentação ou problematização, repetindo slogans que soam bem, mas que, pela sua generalidade, nada realmente querem dizer e que, além disso, muitas vezes não têm bases verdadeiras, informadas ou sérias (os dois mais usados são “a falta de meios” e “o excesso de garantias”, sendo que este último conhece agora a variante do “terrorismo judiciário” das defesas). Segundo: a segmentação da realidade, sublinhando umas coisas e desvalorizando ou omitindo outras, seja sobre questões gerais seja sobre problemas ou processos concretos, de modo que a acentuação de umas coisas permita ir sempre no sentido da mensagem pretendida e a omissão ou a diminuição de outras garanta que as ideias que se vão construindo e fazendo passar não são beliscadas. Querem dois exemplos? A prescrição, sempre direta ou sub-repticiamente atribuída à atividade da defesa, quando muito frequentemente tem que ver com a demora dos processos nas fases administrativas ou investigatórias (demora essa nem sempre pelas “melhores” razões). Ou a hipérbole colocada nas suspeitas e nas diligências das fases iniciais dos processos (amiúde com recurso a cirúrgicas e muito cínicas quebras do segredo de justiça), em detrimento das fases ulteriores, onde se realizam duas ideias máximas do processo penal, o contraditório e o escrutínio crítico e imparcial, fases essas que muitas vezes são varridas para um rodapé ou associadas a manobras da defesa, e não a essa coisa que é essencial, mas que cada vez menos é percebida como tal: a defesa, ela mesma. Terceiro: a construção ou a reconstrução linguística (e semântica) feita a respeito de certas questões ou de certos processos, para inculcar uma ideia, para veicular uma mensagem, para forçar um sentido, para, enfim, construir “uma narrativa”. Querem um exemplo acabado? A verdadeira “Novilíngua” que se criou quando da fase da instrução da chamada “Operação Marquês”, na qual o decisor judicial passou a parte, parte que “perdia” e “ganhava” e que, aliás, em regra, de acordo com o “Evangelho segundo o prefigurado destino de Sócrates”, “perdia”, sendo mesmo, muito frequentemente, “arrasada”; e “Novilíngua” na qual a instrução, que antes quase ninguém sabia bem o que era, se tornou uma espécie de odioso, indecoroso e inadmissível “pré-julgamento”. Ao ponto de a instrução – que por acaso ao longo dos anos foi (de par com os recursos) a fase que mais podas levou nas sucessivas revisões do Código e também na prática, mas isso é para omitir na propaganda, claro – se ter tornado mesmo uma fase a eliminar. Que é isso, agora o inquérito e a acusação serem apreciados por um Juiz?! Que pecado! Et cetera, et cetera – por extenso, e vários.
E tudo isto é deliberado ou é acidental? As duas coisas. Umas vezes é deliberado, seja através de ações malsãs (as violações cirúrgicas e orientadas do segredo de justiça, a manipulação da informação, por exemplo), seja da expressão de opinião (legítima, mas obviamente não indiferente nos seus efeitos, sobretudo de pessoas com certa autoridade). Outras é acidental (conjugação ou encontro de vontades e interesses, caldo cultural, sociológico e mediático, et cetera), ou é um misto, em que os que têm projeto e intenção usam outros ou usam o tal caldo para passar, com habilidade e muitas vezes com perfídia, a sua mensagem. Há de tudo, como em tudo na vida.
Mas de uma coisa não nos podemos esquecer, que é a responsabilidade dos mensageiros. Sem esquecer ou diminuir, antes pelo contrário, a responsabilidade dos autores das mensagens, convém ter em conta que quem as difunde (e fora agora os casos em que quem tem por profissão ou função ser mensageiro se torna o próprio emissor da mensagem), tem um papel muito relevante, e convinha elevar o sentido crítico, a objetividade, o equilíbrio, o esforço, o pluralismo, a profundidade e mesmo, às vezes, o decoro (há casos e casos, é verdade, perdoem-me o pecado grave da generalização). E refrear, por um lado, a gula pela “caixa” e, por outro, a “luxúria” de educar, gerir, reformar e mesmo governar por portas-travessas. “Ah, lá estás tu a dizer que, afinal, a culpa é da comunicação social” – dir-me-ão. Não, não estou a atribuir culpas, e nem tenho essa obsessão (a das culpas), sendo também certo que, se falamos de culpa, ela é de todos, sem exceção, ainda que o cartório de uns seja maior e mais pesado do que o de outros. Falo apenas de responsabilidade(s). E nos seus vários sentidos, que – como tudo na vida – a responsabilidade também os tem, e não é simples nem de sentido único. Coisas simples e de sentido único são matéria de propaganda, seja ela com dolo, seja com “mera” negligência.
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