É fácil gostar de westerns. Ou de filmes de cowboys, como lhes chamávamos quando garotos. Caminhei muitas tardes de sábado para o Cinema Paris, ali à Domingos Sequeira, para me embasbacar com A Morte Vem a Cavalo, Conspiração do Silêncio, O Homem que Matou Liberty Valance, O Bom o Mau e o Vilão, Rio Vermelho, Fort Apache e por aí fora, com uns westerns spaghetti à mistura filmados no deserto de Almería e com outros títulos igualmente apaixonantes: Per un Pugno di Dollari, Uccidi o Muori, Le Colt Cantarono la Morte e fu… Tempo di Massacro ou Ammazzali Tutti e Torna Solo. Fascinante. Absolutamente fascinante!
Também havia os livros. Como os de Texas Jack, plenos de literatura: «Entre os mortos havia um que respirava – Texas Jack!» Há lá melhor literatura do que esta?
Pelo meio dos cowboys, encantei-me com os índios. O maior de todos, Touro Sentado, que deu cabo do invencível Sétimo de Cavalaria na Batalha de Little Big Horn, matando o bandalho do General Custer. Já ficou aqui escrita a sua história, nestas páginas, há uns tempos largos.
Abro espaço para uns e para outros. Começando por Gerônimo. Também deu alguns filmes. O que me vem à memória de repente é Geronimo! (sem acento circunflexo e com ponto de exclamação). E com a frase logo a seguir: «The most defiant warrier of them all». Maravilhoso! O protagonista era escandalosamente branco, não tinha o mínimo de pigmentação vermelha, chamava-se Kevin Joseph Connors, por extenso Chuck Connors, um daqueles meninos bonitos da América, jogador de basquete e de basebol, cara cortada à faca e queixada larga. Nada parecido com o guerreiro e medicine man dos Bedonkohe, um dos ramos da família Ndendahe-Apache, tribo dos chiricahuas. Para o caso pouco importa. Connors ganhou o seu graveto mas ficou longe, muito longe, da aura de Lee Van Cleef, o mestre do monossílabo, de Burt Lencaster, de Gregory Peck, de Charles Bronson, de Robert Mitchum ou Gary Cooper, para sempre na lista dos grandes canastrões.
Não me vou pôr aqui a escarafunchar na enorme mina de labirintos que se abre em cada família dos nativos americanos, tão maltratados que foram, empurrados para becos sem saída de reservas onde os calaram à custa de álcool e drogas. Sim, pode falar-se de genocídio, por mais que os Estados Unidos se arvorem em farol das liberdades. Há algo de podre nesse pobre reino de direitos humanos estilhaçados. O nome apache de Gerônimo era Goyahkla (Aquele que Grita). Sabe-se pouco sobre o fenómeno da sua vinda ao mundo. The Encyclopedia of Oklahoma History and Culture atira o parto para a década de 1820 e para a cidade de Clifton, no Arizona. A sua família foi arrasada pelos mexicanos quando ele tinha cerca de trinta anos: mataram-lhe a mãe, a mulher e os filhos. O ódio cresceu dentro dele com a ferocidade de um cacto saguaro, o emblema das paisagens do faroeste juntamente com as tumbleweeds. Qualquer mexicano tornou-se seu inimigo figadal. E eles fugiam à sua frente aterrorizados gritando pela bênção de São Jerónimo, filho de Eusébio, da cidade de Estridão, na Dalmácia, e que falava do Inferno com as palavras de Virgílio: «Por todos os lados o horror se espalhava; o profundo silêncio inspirava o terror na minh’alma». O terror passou a chamar-se Gerônimo. E o grito d’Aquele que Grita também.
A perseguição dos apaches
As Guerras Apache foram um conflito que colocou o Exército dos Estados Unidos frente a frente com diversas tribos apache. Durou de 1849 até 1886, e prolongou-se até 1920 na forma de escaramuças múltiplas. Iniciou-se logo após o fim da guerra entre os Estados Unidos e o México, que marcou a anexação de grandes faixas de território mexicano onde viviam os apaches, com estes a terem cedido o direito de passagem por elas às tropas americanas. Como agradecimento foram expulsos e os sobreviventes reduzidos às malditas reservas onde a caça escasseava. Mas não foi assim, de um dia para o outro. O que despoletou essa sede de espaço foi a descoberta de jazidas de ouro nas Montanhas de Santa Rita. Os haisndayin, palavra apache para Homens que Vieram de Baixo, cuja designação castelhana foi jicarillas (a palavra significa pequeno cesto, referindo-se aos objetos utilizados pelos índios para transportar os seus pertences), rebelaram-se contra as levas de exploradores que chegavam às centenas e perpetraram dois massacres significativos até à intervenção do 1º Regimento de Cavalaria na Batalha de Cieneguilla, na qual o chefe Flecha Raiada derrotou o Jonh Wynn Davidson. O assunto não ficaria por aí. Uma semana depois os americanos desforraram-se da desfeita na Batalha de Ojo Caliente. Os apaches foram castigados com a dispersão das tribos e a consequente reclusão em reservas. Era desprezar a força de Gerônimo.
Nos anos que se seguiram Aquele que Grita tornou-se um problema complicado. A Reserva de San Carlos não o fechou em horizontes. Arrebanhava companheiros para surtidas sangrentas, tanto nos Estados Unidos como no México. Entre 1870 e 1886, o seu nome era pronunciado com terror. Dois generais foram destacados para se dedicarem à sua perseguição: George Crook e Nelson A. Miles. Acabaria por ser o tenente Charles Barre Gatewood, Nanton Bse-che, o Chefe do Nariz Grande, a conseguir a rendição de Gerônimo. Depois deu-se o processo de domesticação.
Um fim de vergonha
Juntamente com 24 dos seus homens, Gerônimo foi empurrado para o exílio na Florida. Primeiro obrigaram-no a ser agricultor. Depois, transformaram-no num boneco de circo. Não lhe perdoaram a rebeldia. Bem pelo contrário. Fizeram tudo para humilhá-lo. Se o privaram da sua incoercível liberdade, deram-lhe acesso desregrado ao whisky ordinário que se consumia por toda a parte. Reduziram-no a um farrapo solitário, distante dos seus companheiros e longe das pradarias onde outrora soltara o seu grito de arrepiar a pele a um bisonte. Um animal selvagem sem cavalo nem vento. E sem a ebulição fundamental da caça e da batalha que fizera com que o seu coração batesse de uma vida plena e absoluta.
Em 1898 foi exibido na Exposição Internacional de Trans-Mississippi, em Omaha; em 1901 na Exposição Pan-American de Buffalo; em 1904 na Exposição Económica da Louisiana em St. Louis. Em 1905 sujeitaram-no a fazer parte da parada comemorativa da eleição do Presidente Theodore Roosevelt. Recebia dinheiro dos espectadores e assinava fotografias suas como se fosse um palhaço. Nunca regressou às planícies do Arizona. Morreu na enfermaria do posto militar de Fort Sill, no Arizona. Sem gritos. E um silêncio recortado pela brisa dos campos a perder de vista.