Aos 40 anos, Nuno Osório é investigador auxiliar do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS), Laboratório Associado do ICVS / 3B – PT Governo e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Minho. Os interesses de pesquisa do investigador passam pela diversidade genética e a evolução de microrganismos e a compreensão, ao nível molecular, do impacto estrutural e funcional na interação hospedeiro/agentes patogénicos e nas doenças humanas. Supervisionando equipas de cientistas juntamente com Sílvia Portugal (Instituto Max Planck, Alemanha), levou a cabo um trabalho, recentemente publicado na Nature Communications, que clarifica como uma “assinatura” específica pode mudar a forma como estudamos o maior parasita da malária – o Plasmodium Falciparum. Assim, valorizando a bioinformática, o docente com 12 anos de carreira mostra que o foco deve estar direcionado para o estado de desenvolvimento do parasita nos nossos glóbulos vermelhos.
A malária é a maior causa de morte em África, com aproximadamente 229 milhões de casos e 411 mil mortes em 2019, a maioria de menores de cinco anos. Investigar esta doença é essencial?
Tenho interesse em doenças infecciosas e agentes patogénicos há muitos anos, desde o tempo em que estudei Biologia e quis aprender mais sobre microorganismos. E, realmente, a malária é uma doença que tem um impacto dramático ainda nos dias de hoje. Esses são os números de 2019 e acresce o facto de essas mortes serem, acima de tudo, de crianças. Nos países mais afetados, acaba por ter um impacto castrador do futuro e, nesse sentido, é extremamente dramática. O possível efeito da pandemia covid-19 na malária ainda não está quantificado.
Que previsão faz?
Os dados oficiais da Organização Mundial de Saúde (OMS) relativos a 2020 ainda não estão disponíveis. Há várias previsões que apontam para que o número de casos e óbitos possa ser agravado.
A OMS declarou que o aumento de mortes por malária “é uma escolha” e adiantou que, em 2020, as mortes em excesso pela doença nas regiões mais afectadas podem ser maiores do que o número de óbitos provocados diretamente pela covid-19.
Não diria que será maior porque nenhuma doença infecciosa causou tantas mortes como a covid-19, mas a situação tinha vindo a estabilizar e estava numa tendência de melhoria. Com a diminuição gradual dos casos e dos mortos até 2019, agora, o receio é que, devido a problemas como a mudança de recursos, de prioridades ou até os confinamentos influenciem os diagnósticos e tratamentos. Neste momento, ainda não há uma ideia clara. Refiro-me a nível global e não às regiões endémicas, pois o panorama é mais problemático na África Subsariana, juntamente com o do HIV e da tuberculose. Foram feitos alguns esforços para manter as políticas de prevenção que estavam em curso – como a disponibilização de mosquiteiros – para tentar minimizar os efeitos negativos. Houve uma disrupção dos cuidados de saúde em todo o mundo e, obviamente, foi maior nas regiões mais carenciadas.
No âmbito do surgimento do novo coronavírus, de acordo com a OMS, terão sido interrompidos entre 10 e 50% dos tratamentos. Há um grande intervalo.
São estimativas e há cenários mais ou menos negativos. Essa interrupção, tal como a dos programas que estão em curso para reduzir a transmissão, tem impactos a curto, médio e longo prazo. Dá-se o aumento dos óbitos e, no futuro, haverá o agravamento de resistência a tratamentos, por exemplo. Atualmente, a informação que temos é escassa, estamos ainda num período de contabilização.
Em novembro do ano passado, a OMS noticiou que, em 20 anos, foram distribuídas mais de 2,5 mil milhões de redes mosquiteiras. Esta é uma boa conquista?
Acho que os números mostram que é insuficiente. Não conhecemos os números do ano passado, mas sabemos os de 2019 e entendemos que aquilo que tem sido feito não chega. Tal prende-se com as desigualdades económicas e sociais, assim como com a falta de proteção das pessoas que nascem nas regiões geográficas mais desfavorecidas. Basta ver a resposta que foi dada em relação à pandemia, tendo em conta a magnitude que teve, envolvendo todos os setores da sociedade, e compará-la com a malária. Tudo acontece de forma diferente. Temos alguns sinais de esperança, nomeadamente, saiu há pouco tempo, no final de agosto, o resultado de um ensaio clínico, na revista New England Journal Of Medicine, e provou-se que a prevenção com antimaláricos combinada com a vacina contra a malária – neste caso, foi numa região onde a malária é sazonal – e, se esta prevenção for feita antes da época das chuvas, podem ser prevenidos até 70% dos casos. É um resultado muito promissor, mas tem de se continuar a investir e apoiar estes programas. As ferramentas que vão surgindo são positivas, mas tem de haver mais igualdade no acesso aos recursos.
Segundo um relatório da OMS, 31% das crianças com menos de cinco anos de idade continuam a não receber medicamentos antipiréticos se adoecerem. No entanto, há dez anos, a percentagem situava-se nos 36%, sendo superior. O apoio não devia ter crescido com o auxílio dos países desenvolvidos?
Com o avanço civilizacional, seria óbvio que o investimento internacional aumentasse para terminar com estas situações que causam profundo sofrimento. Estes números são incompreensíveis. Como é que não há uma evolução?
Há seis países onde estão concentrados metade dos contágios: Nigéria, República Democrática do Congo, Níger, Moçambique e Burkina Faso. Este panorama alterou-se?
Penso que se mantém. Há condições favoráveis para o mosquito anopheles que transmite o parasita e a maioria das infeções mais severas é causada pelo Plasmodium falciparum, um dos cinco parasitas distintos da doença.
Há uma nova vacina contra a malária que, até novembro de 2020, estava a ser testada no Gana, no Quénia e no Malawi. Que motivo leva a que não seja testada também nos seis países citados anteriormente?
A vacina não é nova, tem umas dezenas de anos, foi desenvolvida pela GSK (GlaxoSmithKline) e testada em ensaios clínicos que demonstraram que oferece alguma proteção, que anda à volta dos 30-40%, mas vai diminuindo após a toma. Começou a ser implementada num projeto-piloto que se conseguiu por acordos entre a GSK e os governos africanos. Seria interessante que essa projeção fosse aumentada a todas as nações afetadas. Este programa também tem servido para testar a segurança da vacina, pois permite que se perceba se não há problemas inesperados.
Segundo os Médicos Sem Fronteiras, estima-se que a metade da população mundial esteja em risco de se infetar com o parasita. Não devíamos pensar numa perspetiva mais global como temos feito com a covid-19?
Qualquer doença infecciosa é sempre um problema mundial. Se permitirmos que a situação se alastre, há também processos de adaptação do agente patogénico aos tratamentos que existem e isso pode levar a que haja reintrodução desse agente noutras regiões e, por isso, não será apenas localizado num só ponto do globo. Por exemplo, a questão das alterações climáticas permitirá que, no futuro, o mosquito esteja presente em qualquer país. Há parasitas da malária que são resistentes a determinados tratamentos. Com a infeliz pandemia que vivemos, ficámos mais atentos e vimos claramente como a evolução dos patogénicos e a sua transmissão e expansão têm uma dinâmica abrangente.
O que falha mais em termos governamentais? A comunidade científica parece dedicar-se ao estudo da doença.
Acho que é visível para toda a gente que, sendo na área científica ou no geral, é possível fazermos muitas coisas quando consideramos um determinado problema uma prioridade. Houve uma mobilização da sociedade como um todo – entidades privadas, comunidade científica e decisores políticos – e isso, felizmente, conduziu-nos a soluções como a vacina que foi desenvolvida, autorizada e administrada em larga escala tendo uma eficácia elevada que nos permite enfrentar este vírus. Esse tipo de resposta não acontece na malária, no HIV e na tuberculose, que já se arrastam há décadas. Na minha visão de cientista – não tenho qualquer envolvimento político –, acho que estas patologias não são encaradas como prioritárias, pois uma grande parte do orçamento devia ser canalizada para aí.
Devíamos aproveitar as aprendizagens da pandemia para outras áreas.
Exatamente. Foi uma lição para todos: é possível fazer muito mais, muito mais rápido e com mais eficácia. Tínhamos algumas barreiras, como a aprovação do fármaco ou a burocracia associada aos ensaios clínicos, mas percebemos que podem ser ultrapassadas. Tenho esperança de que esta lição não caia no esquecimento e que aproveitemos os conhecimentos adquiridos. Não podemos viver as doenças, olhar para o lado e fingir que não existem.
Terá isso acontecido no início da pandemia, quando o coronavírus foi detetado em Wuhan, na China?
Nos primeiros tempos, sim.
“Nos últimos anos, a bioinformática permitiu evoluir da investigação científica centrada num conjunto limitado de genes ou proteínas para uma perspetiva mais ampla, mais geral e completa”, explicou num comunicado de imprensa. Podemos dizer que a bioinformática resulta de uma conjugação da Biologia, da Informática e da Matemática?
Baseia-se nisso. A Biologia foi avançando, especialmente a Molecular – que lida com o ADN, a sua tradução de RNA para proteínas –, nos últimos anos. Os organismos vivos são extremamente complexos e, antes, fazíamos investigação focada num gene, em particular, uma análise muito orientada para algumas das moléculas do sistema biológico. Com a tecnologia e o entendimento científico, foi possível abordar estes sistemas como um todo, de modo mais holístico. E, para isso, foi-se acumulando cada vez mais informação – temos a sequenciação de genomas de vários organismos, repositórios públicos com informação de transmissão desses genes e das proteínas –, uma enorme quantidade de dados. Para lidar com eles, integrou-se as ferramentas informáticas porque, para analisá-la, não era suficiente ter um caderno ou um simples Excel. Os cientistas tiveram de acompanhar as inovações e, por isso, surgiu a área entusiasmante da bioinformática.
Mostra, juntamente com os seus colegas, que o foco no estudo da malária deve estar direcionado para o estado de desenvolvimento do parasita nos nossos glóbulos vermelhos. E descobriram que uma das características mais surpreendentes do parasita é a capacidade de poder, aparentemente, desaparecer da corrente sanguínea ao aderir à parede dos vasos sanguíneos.
A nossa investigação tem muitos anos e, como outros grupos de cientistas, queríamos perceber quais são as razões pelas quais, umas vezes, se regista malária assintomática e, noutras, malária severa que pode até ter consequências fatais para o organismo. Começámos por questionar quais são os genes dos parasitas que estão expressos na doença severa, ou seja, quais é que começavam a ser transcritos quando alguém estava realmente doente. Na revista Nature Medicine, publicámos um artigo: conseguimos amostras clínicas de pessoas com doença severa, no Mali, durante a estação seca, e comparámos as mesmas com amostras de pessoas que ficaram doentes quando há chuva. Vimos, a partir dos perfis de expressão, que as principais diferenças tinham a ver com o estado de desenvolvimento dos parasitas. Depois, começámos a colocar hipóteses para esta diferença: neste momento, com o trabalho publicado mais recentemente, temos bastantes dados que suportam a hipótese de que a malária severa prende-se com o tempo de circulação dos glóbulos vermelhos infetados, mais curto, quando comparado com a malária assintomática.
E o parasita resiste à eliminação que sofreria quando os glóbulos vermelhos passam pelo baço e eliminam os glóbulos velhos e infetados.
Sim. O parasita tem uma parte de desenvolvimento sexual que acontece no mosquito e, quando uma pessoa é picada, há a introdução dos parasitas – que, nessa fase, têm o nome de merozoitos –, vão para o fígado e, depois, infetam as células dos glóbulos vermelhos. Portanto, inicia-se outro ciclo de desenvolvimento, desta vez assexual, e o que acontece é o seguinte: se os glóbulos vermelhos afetados estiverem em circulação, são normalmente eliminados, quando já têm alguma deficiência, no baço. Se andarem em circulação com o parasita no seu interior, o mesmo evolui ao longo do ciclo. Quando temos a doença assintomática, o parasita não faz com que os eritrócitos se liguem aos vasos sanguíneos, pois mantém-nos em circulação. E parte dos glóbulos vermelhos são eliminados e, o nível de parasitas, continua em níveis baixos. Nesses casos, temos uma malária que não causa sintomas graves. Quando estamos em situações severas, o parasita faz com que os eritrócitos infetados consigam aderir às paredes dos vasos sanguíneos. Aí, criam-se condições para que a severidade aumente. Quisemos saber se este mecanismo era típico do Mali ou generalizado. Para isso, fizemos o estudo publicado na Nature Communications, analisando estudos publicados entre 2007 e 2020, em que tínhamos isoladas diferentes severidades e localizações e testámos a nossa hipótese. E encontrámos o mesmo perfil de expressão.
Esta descoberta pode resultar em métodos de diagnósticos mais avançados ou terapias mais eficazes para diversas doenças?
Quero ressalvar o papel da bioinformática porque, quando chegámos à nossa hipótese, só o fizemos porque estudámos o perfil de expressão de milhares de genes das amostras clínicas. Outra grande vantagem da bioinformática é a possibilidade de trabalharmos com outros conjuntos de dados que vão sendo publicados a nível internacional por diversas equipas. Combinámos tudo e tirámos novas conclusões acerca de experiências que tinham sido realizadas anteriormente. No caso do tratamento da malária, estes dados da equipa de que faço parte reforçam que a dinâmica da adesão celular pode ser uma das áreas alvo de tratamento no futuro. Podemos fazer muito mais a nível da prevenção, mas, quando a doença afeta alguém, é importante haver ferramentas terapêuticas para que os eritrócitos sejam eliminados.
É curioso que o principal parasita causador da malária consiga adaptar-se durante a estação seca e “esperar” pelo regresso da chuva – e dos mosquitos – para se propagar.
Era um dos grandes mistérios que existia na literatura: como é que nos meses sem chuva, nas regiões endémicas, o parasita subsistia até a uma fase seguinte de transmissão? Os nossos dados mostram que subsiste dentro das pessoas que são o reservatório em que se mantém. Mas, por algum mecanismo que não entendemos bem qual é, consegue perceber se está numa situação de transmissão ou de seca em que tem de aguentar até voltar a causar doença severa. Não induz a adesão dos glóbulos vermelhos aos vasos sanguíneos e permite que circulem pelo organismo: uns são eliminados e outros não e, assim, o hospedeiro não tem grandes dificuldades. Achamos que este contributo é importante.
Seguiram 600 pessoas no Mali entre 2017 e 2018. Todos os membros da equipa estiveram no terreno?
Temos equipas muito grandes e vários laboratórios colaboram connosco. No artigo mais recente, somos cerca de 12 autores de diferentes instituições de variados países. São grupos multidisciplinares e, na vertente de campo, não há necessidade de que todos estejam em determinado sítio. Cada um tem a sua especialidade e área de atuação. No meu caso, por exemplo, nunca estive no Mali e permaneci na Universidade do Minho, em Braga, a apostar na parte computacional. É claro que estamos sempre em contacto por videochamada porque é importante que tenhamos conhecimento de todas as partes do estudo para que as consigamos conectar.
A bioinformática tem sido devidamente usada durante a pandemia ou foi subvalorizada?
A nível nacional, temos um problema que não é novo: o acesso aos dados clínicos, de sequenciação, à informação dos doentes. É sempre muito problemático. Por exemplo, trabalho também com o HIV-1 e temos projetos do Brasil com informação muito bem organizada e facilmente obtida do país inteiro, que tem uma escala totalmente diferente da nossa, enquanto em Portugal a investigação é feita por nossa iniciativa: contactamos os hospitais, cada um tem as suas regras de ética e privacidade, bem como uma forma de armazenar os dados. Por vezes, estão armazenados de forma não-digital ou, de forma digital mas não podem ser armazenados de forma fácil. Temos de ter autorizações e há imensa burocracia. Foi isto que aconteceu com o coronavírus: o acesso a dados com qualidade e sem erros foi muito difícil. É pena que esta seja a nossa realidade e o processo não seja agilizado. Devia haver uma entidade que fizesse a recolha da informação, a armazenasse e a disponibilizasse. Não estou a dizer que não se deve ter em atenção a privacidade dos doentes, pois essa está acima de tudo, mas mesmo cumprindo esses requisitos, não conseguimos a informação. É um aspeto que podia ser melhorado, pois temos uma luta constante. No caso dos dados brasileiros, sentimos a diferença na pele – um interesse e uma vontade política a nível nacional de obter toda a informação – porque, apesar da dimensão do país, conseguem consolidar tudo. Em Portugal, estamos por nossa conta e risco e passamos por inúmeros comités de ética. Não há sensibilidade, mas somos um país pequeno e devia ser mais fácil implementar estruturas de apoio. Em geral, a sociedade não presta atenção às doenças infecciosas. Só começou a fazê-lo com o surgimento da covid-19. Veremos se este interesse se manterá.