No lugar do morto

No lugar do morto


Sclavi conduz-nos através de uma trama em que tudo será possível numa só noite, em orgia de violência, mais sangue que sexo, jogando às escondidas com o leitor


Uma jovem mulher sai de casa apressada e definitivamente, sem se despedir, aproveitando a circunstância de o companheiro estar no duche. Vemo-la afastar-se do prédio, num daqueles pátios milaneses a lembrar as vilas lisboetas, outrora (ou ainda) populares. À sua espera, num saudoso Peugeot 504, está Federico, amante para quem se bandeou. Francesca, raparigaça estouvada, leve e fresca, tontinha q.b. ou com os alqueires mal medidos, tanto faz, a pregar uma mentira ao rapaz: “Foi compreensivo, não fez cenas”, aludindo à suposta reacção de Zardo, deixado sob o chuveiro.

Federico não sabia ainda que teria de regressar ao local para satisfazer um capricho da amante: esta esquecera-se de um creme anticelulite especial, só disponível no estrangeiro… (estamos ainda na década de 1990); era forçoso lá voltar, e que fosse Federico, coisas de machos. Ao invés do creme, trará o cadáver de Zardo, que encontra degolado, dum só golpe bem desfechado. Chamar a polícia?, não chamar?… que justificação daria para a sua presença ali, junto do cadáver ainda fresco? Dizer que era o homem por quem a mulher do defunto trocara não ajudaria; e via já o sobrolho desconfiado dum agente, inquirindo com ironia, se o morto acaso usava creme anticelulite… Assim, depois do estupor, a precipitação – cadáver numa mala com mãozinhas de fora… E a partir daqui o argumento de Tiziano Sclavi – o criador de Dylan Dog – conduz-nos através de uma trama em que tudo será possível numa só noite, em orgia de violência, mais sangue que sexo, jogando às escondidas com o leitor, que segue ávido a evolução dos bonecos pranchas afora, desconfiado que Sclavi quer fazer de Machado de Assis, que há mais de cem anos tem posto toda a gente perguntar-se se Capitu traiu ou não Bentinho. Quem matou Zardo, afinal?, e que homem era esse, que quase toda a gente confunde agora com Federico, o que passou a achar-se no lugar do morto? – ou seja: ficou com a mulher, com o nome (agora ele é Zardo, os velhos vizinhos confundem-nos) e até a generosa herança materna, entretanto levada a falecer, que a si irá parar…

Baseado num argumento datado dos anos oitenta, adaptado ao cinema e publicado sob a forma de romance, intitulado Nero (1992), Sclavi deu-nos um thriller denso, insidioso, negro. Tudo o que parece poderá ser, oferecendo diversas possibilidades, graças também à infração dos códigos dos quadradinhos no que respeita ao desvio do fio narrativo em desafio ao leitor, das analepses às (pretensas?) alucinações: vinhetas com cercaduras esbatidas, ou mesmo sem elas, filacteras com outro formato, sfumatto ou alteração ou ausência de cor, nada disso está no trabalho estupendo e minucioso de Emiliano Mammucari (Velletri, Roma, 1975), que para este trabalho trocou as aplicações informáticas pelos velhos pincéis e marcadores, significando também um regresso à própria juventude, ao tempo histórico em que a acção decorre.

Zardo

Texto Tiziano Sclavi

Desenho Emiliano Mammucari

Editora Sergio Bonelli Editore, Milão, 2020

 

Bdteca

O Oeste natural.  Com Buddy Longway, estreado em 1972 nas páginas da revista Tintin,o suíço Derib trouxe ao western uma dimensão diferente, muito longe dos usuais lugares-comuns; uma abordagem mais humanista e ecológica, contacto com o outro (o herói constituiu família com uma índia), um desenho e um grafismo soberbos. Mas a génese do espírito dessa série maior está numa outra para crianças, a do indiozinho sioux Yakary, estreada em 1969, com argumento do também suíço Job. Volvido mais de meio-século, Derib continua encantado com a sua personagem. Um novo álbum aí está, o 43.º, desta vez com argumento de um estreante na BD, Xavier Giacometti: Le Fils de l’Aigle, Le Lombard, Bruxelas, 2020. No fundo, trata-se em parte de uma outra forma, mais infanto-juvenil e para todos, de abordar questões como o respeito pela natureza, a ajuda mútua…

 

 

Planeta encardido. O Imperador Toxico governa o planeta Carvão, um astro sujo e triste em que os habitantes trabalham nas minas apenas para benefício do soberano. Num desses locais subterrâneos, Apollo, um jovem filho de mineiro, tem como função verificar a segurança das estruturas que sustentam essas galerias subterrâneas, onde os homens trabalham sem ver a luz do dia. O rapaz conhece a mina como as mãos, mas um dia, alertado por um ruído estranho, vê algo que até aí desconhecera e que poderá mudar a vida àqueles tristes habitantes. “Esperança”, L’Espoir é o título do primeiro tomo desta nova série, com um desenho disneyescamente entusiasmante de Michel Colline, autor também do texto. Edição Pacquet, Genebra, 2020.