O termo ditador está intimamente ligado com a noção de estado de emergência. Na Roma antiga, nos tempos da República, ditador era quem recebia poderes extraordinários em tempo de guerra, por um período máximo de seis meses. Não tinha conotação negativa, mas rapidamente degenerou. Na guerra contra o coronavírus, Estados receberam poderes extraordinários e já surgem alegações de abusos.
Na China, epicentro inicial da pandemia e pioneira da vigilância digital, esta faz cada vez mais parte do quotidiano. França e Rússia já sonham em seguir estes passos e Israel colocou em campo os seus poderosos serviços secretos. A imprensa espanhola fala em censura e os jornalistas nunca estiveram tão amarrados na Húngria, que impôs um estado de emergência sem fim à vista, manobra típica de ditadores.
“Há razões históricas para temer esse tipo de abuso”, assegura ao i Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do ISCTE-IUL. “Crises reais ou inventadas – desde o incêndio do Reichstag pelos nazis até à chamada intentona comunista no Brasil de Getúlio Vargas – foram usadas para a declaração de um estado de emergência, restrições das liberdades que nada têm a ver com a crise em questão”, lembra.
Se a atual crise económica causada pela covid-19 arrisca ser a pior desde a Grande Depressão, em 1929, muitos historiadores, políticos e analistas lembram que foi no rescaldo desta que surgiram os grandes autoritarismos do século XX. “O futuro, em história, é absolutamente imprevisível”, acautela o historiador Sérgio Campos Matos, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Contudo, “é inegável que nestes últimos anos houve uma afirmação de nacionalismos radicais, que se procuram fundamentar em mitos étnicos e raciais”, nota Campos Matos. “Como sabemos, em muitas comunidades, a memória é curta”.
Na crise atual, com mais de 2,6 milhões de casos registados de covid-19 e mais de 187 mil mortes, a ameaça é real. Mas para o subdiretor do CEI, há três critérios essenciais para definir se o estado de exceção é adequado. Primeiro, se as limitações de direitos estão diretamente ligadas à emergência. Segundo, se há mecanismos independentes de responsabilização das autoridades. Terceiro, se o estado de emergência tem prazo de validade.
Desinformação? À luz destes critérios, a situação na Hungria, um Estado-membro da União Europeia, é particularmente grave. A “lei coronavírus”, aprovada em março pelo Fidesz, de Viktor Orbán, implica que os jornalistas húngaros temem até cinco anos de prisão por espalhar “desinformação” sobre a covid-19. Definir o que é “desinformação” fica nas mãos de Orbán, por tempo indeterminado.
Se é verdade que a desinformação, as falsas terapias e as curas milagrosas, custam vidas em tempo de pandemia, “a melhor garantia contra a desinformação não é a censura”, nota Bruno Cardoso Reis. “Sabemos que a censura promove a desconfiança dos cidadãos face à informação oficial e publicada, alimenta todo o tipo de rumores”, garante.
Não é uma situação fácil. Até aqui ao lado, em Espanha, há tensões sobre o que é desinformação, com acusações de censura contra o Governo de Pedro Sánchez, pela oposição e jornais como o ABC e El Mundo. Alguns jornalistas acusam o Governo de não responder a perguntas e fechar o Portal da Transparência, onde estão os dados oficiais, após declarar o estado de emergência.
A situação ficou mais tensa quando a rádio Cadena Ser revelou que a Guarda Civil enviou email a instar os agentes a identificar notícias falsas que “poderão causar pânico social e insatisfação” em relação às “instituições e Governo”. O Executivo espanhol já assegurou que foi um mal-entendido.
Punir a oposição Entretanto, na Hungria, os jornalistas não são o único alvo de Orbán. É acusado de usar a emergência para punir dissidentes, cortando fundos a presidentes de câmara da oposição, por todo o país.
Por exemplo, na pequena cidade de Göd, bastião da oposição, uma fábrica da Samsung foi declarada “zona económica especial”. O imposto sobre imóveis deixou de ser recolhido pela Câmara de Göd – era cerca de um terço da sua receita – e passou para o conselho municipal de Pest, sobre o controlo do Fidesz.
Já na Polónia, as autoridades independentes estão sob pressão: há muito que o Governo quer obrigar juízes do Supremo Tribunal a reformarem-se. O partido governante, o Lei e Ordem, tomou nota das táticas autoritárias de Orbán. As presidenciais de 10 de maio não deverão ser adiadas, apesar da oposição estar, para todos os efeitos, proibida de fazer campanha. Os votos dos cerca de 30 milhões de eleitores deverá ser integralmente por via postal – teme-se fraude a uma escala sem precedentes.
A União Europeia reagiu com comunicados duros contra ambos os países. Ao mesmo tempo, boa parte dos 37 milhões de euros que pôs à disposição de Estados membros mais recentes e pobres, para enfrentar a pandemia, foram parar à Polónia e Hungria – mais ainda que a Espanha ou Itália.
Medo do Big Brother Ninguém duvida que o mundo não será o mesmo depois desta crise. Crise, do grego krísis, “ação ou faculdade de distinguir, decisão, momento difícil”. Neste momento, uma das grandes decisões em cima da mesa é um aumento global da vigilância digital.
Na China, essa decisão já tinha sido tomada há muito tempo. Desde o uso massivo de câmaras de vigilância, com reconhecimento facial, até ao controlo da internet e redes sociais. Aplicações como o WeChat, um espécie de Whatsapp, ou o Weibo, semelhante ao Twitter, são monitorizados e censurados diretamente pelas autoridades.
Com a pandemia, ganham protagonismo os códigos QR, tornados omnipresentes. São uma espécie de passaportes para os chineses se deslocarem ou até irem à compras: se a cor for verde não tiveram contacto com potenciais infetados. A China venceu a pandemia, por agora, mas teme a segunda vaga.
“Este código é uma coisa muito boa”, disse uma lojista chinesa à AFP. “Permite a clientes e funcionários saber que o sítio onde vão é seguro”. Mas a segurança tem um preço: caso tenha um código vermelho, não há ninguém a quem recorrer. E, segundo o New York Times, todos os dados são entregues à polícia, sem aviso aos utilizadores.
Se a China foi apresentada como modelo no combate ao novo coronavírus, com medidas duras e rápidas de isolamento social, imitadas no resto do mundo, teme-se que o mesmo aconteça, a uma escala diferente, com a vigilância digital. França já pediu à Apple que alivie as suas regras de privacidade, para a app Stop Covid, cujo lançamento está previsto para meados de maio – ainda terá de passar pela comissão de proteção de dados francesa.
“Deve-se trabalhar para, em conjunto com os nossos parceiros europeus, conciliar monitorização com garantias”, considera Bruno Cardoso Reis. Nomeadamente, garantias quanto “à segurança de dados e escrutínio de quaisquer eventuais abusos”. O investigador lembra o caso da Coreia do Sul, onde a monitorização digital foi feita com menos receios de abusos que na China.
Entretanto, Israel não foi com meias medidas. Em março, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu deu ordens ao Shin Bet, a agência secreta responsável pela segurança interna, para espiar os seus próprios cidadãos, caso possam estar infetados. Sem qualquer mandato judicial, as secretas passam a ter acesso à localização dos israelitas através dos seus telemóveis.