Margarida presta cuidados a idosos e conta que num curto espaço de tempo as regras de segurança mudaram muito. Artur, agente funerário, vai mais longe e acha mesmo que esta pandemia mudou a forma como vivemos e morremos. Hugo é enfermeiro e descreve a difícil realidade de ver um filho através de um vidro. ENelson, cantoneiro, fala num “misto de medo e receio” de contaminar a família.
Margarida Carqueja. Ajudante de ação direta
“Temos que proteger os idosos”
Os idosos são a população mais vulnerável perante o surto de covid-19. Por isso, há cerca de um mês que os utentes do Centro de Assistência Paroquial de S. Pedro de Alvega, no concelho de Abrantes, não se reúnem na instituição. Todos estão nas suas casas e o regime de centro de dia ficou suspenso. As funcionárias passaram a fazer-lhes visitas domiciliárias, em que garantem os cuidados de higiene e alimentação que outrora eram prestados no centro – isto a juntar a todo o apoio fora de portas que já existia antes da pandemia, este feito a idosos que não se encontravam em regime de centro de dia.
Margarida Carqueja é uma das ajudantes de ação direta desta casa, função que desempenha há 18 anos. Todos os dias sai com uma colega numa das carrinhas do centro para prestar os cuidados aos seus utentes. Esta equipa tem cerca de uma dezena de idosos a seu cargo da parte da manhã e se o trabalho dentro das casas não mudou por aí além – entre banhos, mudanças de fraldas e cuidados específicos com utentes acamados, limpeza das casas e organização dos medicamentos – as regras de segurança alteraram-se consideravelmente. “Ainda dentro da carrinha pomos as luvas, as batas e as viseiras e entramos já assim na casa dos idosos”, conta. Quando há mais de um utente por casa, trocam sempre de luvas antes de prosseguirem. “Sabemos que eles são o grupo de maior risco, por isso sentimos uma responsabilidade maior”, garante. Esta é uma preocupação partilhada por todas as funcionárias.
Mas não são apenas os cuidados básicos que levam a casa de cada um – muitas vezes, a companhia é tão importante como tudo o resto. “Eles estão sempre a perguntar-nos quando é que isto acaba para voltarem para o centro”, diz a funcionária. Muitas vezes as visitas são o único contacto que estes idosos têm com o exterior. E a solidão é, para os seus utentes, o pior inimigo – muito pior, dizem-lhe, do que um vírus que não podem ver.
“Não têm bem a noção do que se passa. Eles dizem que não entendem, que em toda a vida nunca houve nenhuma coisa destas”, explica. No início da pandemia chegaram a encontrar uma utente num café que ainda não tinha fechado.
No final do dia, apesar do trabalho extra e da baixíssima remuneração, Margarida continua a não ter dúvidas de que a sua função é essencial. “Temos que fazer o nosso trabalho, temos que proteger os idosos”.
Artur Palma. Agente funerário
“É inglório. Por vezes, chego a casa e choro”
“A pandemia alterou a forma como se vive e, em alguns casos, até como se morre. Que o diga Artur Palma, gerente da Funerária Velhinho, na Amadora, que admite “nunca ter imaginado passar isto”. Nem o convívio diário com a morte, anos a fio, o soube preparar para este desafio: o de enterrar os mortos à distância fria de um caixão fechado, sem direito a despedidas ou cerimónias fúnebres.
Com as notícias da aproximação do vírus, foi necessário, antes de mais, reunir “todo o material indispensável possível”. As máscaras, luvas, toucas para o cabelo e fatos especiais. “Adquiri todo o equipamento quando isto começou, mas agora, quando preciso de reforçar o stock, as coisas tornaram-se mais difíceis. Há menos oferta e os preços aumentaram de forma exorbitante”, lamenta o agente funerário. “Antes, um conjunto de cem toucas para o cabelo custava dois euros. Hoje, são dez”, diz.
O medo faz agora parte seu do dia-a-dia. Tal como a tensão, sempre presente, quer se trate de uma vítima mortal por covid-19, ou por outra doença qualquer. “Neste momento, são todos suspeitos e quem está na linha da frente tem de ter cuidado”.
É essa suspeição que fere fundo a alma de Artur Palma, habituado a abrir o seu coração e a ceder o ombro solidário aos familiares e amigos de quem enceta a derradeira viagem. “Somos como psicólogos para quem nos procura, os primeiros a tentar a ajudar quem perdeu um ente querido, através das nossas palavras”, afirma. Um papel que a pandemia desfez. “Como podemos cumprir essa missão com um vidro a separar-nos e de máscaras no rosto?”, questiona. Artur Palma sente-se “condenado” e “injustiçado”. E sente-o mesmo na pele, quando, por vezes, chega a hora de explicar a familiares que “já não é possível abrir o caixão, e não podem voltar a ver ou despedir-se de quem morreu”.
Alguns clientes revoltam-se. Contra a doença e a morte. Contra o mundo e o agente funerário. O único rosto que se dá a conhecer antes da última morada. “É um trabalho inglório”, que alguém tem de fazer, mas que, confessa Artur Palma, o tem feito sofrer como nunca julgou ser possível. “Por vezes, chego a casa e não consigo suster as lágrimas”.
Hugo Domingues. Enfermeiro
“Fica tudo embaciado e vês a água a escorrer”
Quem tem vindo a receber e a isolar os pacientes com covid-19 sabe que “este ano é para esquecer”. Pelo menos, é assim no serviço de Urgência do Hospital do Espírito Santo, em Évora, onde Hugo Domingues trabalha. À semelhança do que acontece noutros hospitais do país, a pandemia veio alterar as escalas de trabalho. Além de trabalharem mais 20 horas por mês, os turnos passam de 8 para 12 horas. “Férias é até ver”, explica o enfermeiro, que confessa que “o pior disto tudo é a parte emocional”. “Quase todas as pessoas saíram de casa ou entregaram os filhos aos avós e não vão lá”, explica Hugo Domingues, acrescentando que “quando vão, veem os miúdos pelos vidros. Não há carinhos, não há afetos”. É esta a questão que, juntamente com o stress do trabalho e o receio de ser infetado, tem “mexido mais” não só consigo, como também com os seus colegas. “As pessoas acabam por ficar isoladas sem ter uma rede de apoio”, confessa, explicando que o facto de os profissionais de saúde terminarem o turno sem saberem, algumas vezes, se os pacientes que trataram estão infetados ou não, pode deixá-los mais nervosos quando chegam a casa ou aos hotéis onde estão instalados, e onde “não têm ninguém para falar”.
Hugo Domingues conta ainda que, um mês e meio depois de surgirem os primeiros casos, a ansiedade causada pela falta de material de proteção individual começou a dissipar-se. “Agora não é que haja excesso, mas racionado vai havendo”, afirma.
Apesar de haver outros vírus e bactérias que já exigiam um maior nível de proteção e, por isso, o uso de fatos especializados, a pandemia fez com que estes passassem a ser utilizados todos os dias. As máscaras são racionadas e enquanto antigamente havia “três ou quatro pessoas” a acompanhar os pacientes “numa fase aguda”, agora são menos elementos.
E não são só os protocolos para despir os fatos que são complicados. A complicação passa também por assistir uma pessoa com o fato vestido. “Aquilo é uma coisa insuportável. Estás três horas dentro daquilo e parece que caíste dentro de uma piscina. Fica tudo embaciado, começa a condensar e vês água a escorrer. Quando tiro aquilo parece que saí debaixo do chuveiro”, explica Hugo.
Nelson Ribeiro. Cantoneiro
“Há um misto de medo e receio pelas crianças”´
Aos 29 anos, Nelson admite que trabalha hoje com “um misto de receio e de medo”, sobretudo pelo que pode acontecer aos filhos, de 10 e 4 anos. É cantoneiro desde outubro, o mais novo entre os seus colegas, tendo chegado à Junta de Freguesia da Penha de França depois de ter tido outra experiência profissional há uns anos e de se ter entregado durante muito tempo ao seu sonho, o futebol.
Um dos seus trabalhos é a recolha do lixo que as pessoas deixam à volta dos ecopontos, quer seja por estes estarem cheios quer seja por outro qualquer motivo: “Sinto que antes da pandemia, estava tudo no ecoponto ou à volta dele. Agora as pessoas vão deixando os sacos nos passeios, assim junto às portas”. Um novo comportamento que dá ainda mais trabalho a Nelson e aos colegas.
“Menos lixo [doméstico] não há, todas as pessoas continuam a vir à rua por os seus sacos”, conta.
A pandemia trouxe um contexto diferente aos seus dias logo ao quarto mês de trabalho, mas Nelson tem já presente aquilo de que mais gosta de fazer. “Gosto de cortar relva. Dizem que varrer é fácil, mas eu não gosto. Gosto mais de cortar”, diz, com um sorriso tímido.
As semanas que leva de estado de emergência também já lhe permitem chegar a algumas conclusões sobre o comportamento dos portugueses: “As pessoas não respeitam as regras nem os conselhos, vejo muito isso, parece que enquanto não tiverem o coronavírus não se preocupam muito”.
Do seu lado, diz, faz o que pode para driblar o contágio. Como mora perto, nas Olaias, vai muitas vezes a pé para o trabalho e tenta sempre proteger-se quando está nas ruas. E mesmo quando não vai a pé, é um colega da junta que passa num local combinado para lhe dar boleia. Assim, nunca tem de andar de transportes públicos.
O receio cresce na hora de voltar a casa, onde a mulher e os dois filhos estão agora. Eles porque os estabelecimentos de ensino estão encerrados e ela porque trabalha numa creche e, por isso, também não sai por estes dias.
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