Abel Barros Baptista. “É preciso ter uma visão desangustiada da leitura”

Abel Barros Baptista. “É preciso ter uma visão desangustiada da leitura”


É professor universitário, a mais destacada figura dos estudos brasileiros em Portugal,  mas nunca se deixou academizar. O seu mais recente livro, publicado pela Tinta-da-China, tem um título um tanto obnóxio (ah, os dicionários!) e vem confirmar o que alguns já sabiam: sem a sua  cultura literária, a sua escrita inventiva, o seu humor a…


Se submetêssemos os autores portugueses a um ranking que espelhasse a relação dos seus livros com a palavra 'obnóxio', Abel Barros Baptista classificar-se-ia certamente em primeiro lugar e muito provavelmente (não há estudos sobre o assunto) a larga distância de todos os outros. Obnóxio é, aliás, o título do seu novo livro, um volume desinteressado das questões de género que continuam a apoquentar o nosso meio editorial. E “sem tema, sem assunto, sem nada”. Mas tem tudo, não fosse ele uma espécie de miscelânea: cenas reconhecíveis, divertidos diálogos ficcionais onde se conversa e desconversa, ensaios de natureza humorística, uma fantasia em dois actos, um prólogo e um epílogo e até um “Óbvio obnóxio deste livro”, o admirável e exasperante posfácio que Luísa Costa Gomes assina.

Há quem venha de corda ao pescoço confessar que não leu todo o Steiner, um ou outro grande clássico, nenhum Proust. Abel Barros Baptista não vai nessas laçadas que nos atam aos livros de forma coerciva, retirando-nos a liberdade que ler livros constitui. Pudesse ele e a leitura entendida como coisa solene subiria ao cadafalso. O lugar-comum, com quem mantém um atrito de faísca, também não ficaria vivo: asfixia os jornais, mata a imprevisibilidade, destrói a possibilidade da literatura.

Tem praticado géneros ditos menores: o ensaio literário, o ensaio faceto, a crónica, géneros de espécie complicada, os diálogos ficcionais que ocupam o centro deste “Obnóxio”. É uma inclinação?

Nunca tive a capacidade de começar um romance, nem interesse. Mas não sei se são esses géneros que são menores ou se são os outros que são maiores. É mais isso. A literatura há mais de um século que gravita em volta do romance, que é já de si um híbrido. Curiosamente, o romance também comporta todos esses géneros: o ensaio, a crónica e outras coisas soltam-se do próprio romance. Se a literatura se reduzisse a um género, seria o romance. É o género mais capaz de absorver todos os outros, incluindo o teatro e a poesia. Se aparecer um romance com uma narrativa, uma peça de teatro, crónicas, ensaio, poesia, etc. ninguém vai estranhar porque faz parte da natureza do romance assimilar todos esses géneros. E isso contribui, não apenas para que o romance seja um género mais duradouro que os outros, mas também para que esses géneros chamados menores proliferem e os escritores acabem por praticá-los. Por outro lado, como a vida de quem se dedica à escrita não é uma vida assim muito remunerada, é o modo que os escritores têm de intervir no espaço público, uma vez que não podem publicar livros grandes num jornal [risos]. Tudo isso sugere que há alguns géneros que nós identificamos com a ideia de literatura e há outros que também fazem parte dessa ideia mas que são práticas acessórias ou complementares ou suplementares.

É também o caso do ensaio? Ou é assim que ele é hoje tendencialmente visto?

O caso do ensaio é diferente. Do ponto de vista histórico, é um  género tão importante como o romance, mesmo na formação da ideia de literatura moderna tem uma importância muito grande: é a parte da literatura que reflecte sobre a literatura, que pensa o que é a literatura, o que é que ela faz. E enquanto género que faz isso é inerente também ao romance. Há romances famosos que são conhecidos por terem ensaios ou por serem eles próprios uma forma de ensaio.  E até existe a noção de romance-ensaio, como “O Homem sem Qualidades”, com um capitulo, de resto, que é uma das teorias do ensaio mais interessantes que podemos encontrar.

Tal como ele hoje é praticado, é um género pouco interessante, não lhe parece?

Pois … Quer a universidade quer a imprensa contribuem muito para isso. O ensaio acaba por se identificar com um tipo de escrita onde a imaginação não é necessária. A maior parte das pessoas que escrevem o que se chama ensaio não têm essa preocupação da imaginação.

Ou não têm imaginação?

Não sei… há pessoas que a escrever parece que não têm imaginação mas têm para outra coisa. Nunca se sabe.  Há uma coisa interessante que se pode observar hoje. Por exemplo, a crónica  – e não falando já  na ideia de crónica medieval, como narrativa de acontecimentos. A crónica, que surge no século XIX com particular força no Brasil,  era um género literário de grande interesse porque era uma forma regular, hebdomadária, como se dizia na altura, de o escritor aparecer  e comentar a vida pública, literária, etc. E era um terreno para a imaginação. E por vezes os cronistas mais imaginativos inventavam as coisas mais bizarras. Hoje, fala-se de crónica com o sentido que os ingleses  e os americanos dão a coluna: o espaço que uma pessoa ocupa num  jornal. A palavra opinião é muito horrível.  O jornal está a dizer que aquilo que publica ali são umas prosas em que determinada  pessoa transmite a sua opinião. Não se espera que tenha imaginação, que  seja inventiva na maneira de escrever, que seja irónica ou ambígua.

E, por vezes,  nem que tenha tido tempo para ter opinião…

Essa rarefacção da imaginação no espaço público levou a que se começasse a usar um nome que tinha uma certa dignidade literária de uma forma completamente imprecisa. E diz-se “leste a crónica de fulano?” Não são crónicas. São uns artigos. Havia uma época em que havia o artigo de fundo.  Era um artigo mais extenso em que o jornal ou o seu director reflectiam sobre determinados  problemas da nação, da vida política ou até da literatura. O artigo de fundo praticamente desapareceu e hoje os jornais têm cronistas, que são aqueles que publicam a sua opinião com alguma regularidade. O que define o cronista não é o género da escrita é a regularidade temporal. São pessoas que fazem a crónica dos tempos e depois vimos todos a falar do mesmo. Alguém que cai da bicicleta, se for ministro, todos os jornais têm uma pessoa a escrever sobre aquele assunto.

Muito enriquecedor, portanto.

É bastante pobre porque rarefaz aquilo que é essencial na crónica, que é a ideia de imaginação. A crónica literária entendia-se como uma espécie de visão alternativa da doxa, da visão standard, padronizada dos problemas. Poder-se escrever sobre uma uma crise política numa perspectiva ficcional ou simplesmente galhofeira, não estar interessado em debater politicamente, já é uma maneira alternativa de compor o texto. Eu não tenho grande preocupação com os géneros. À medida que se vai ganhando prática e interesse, chega a uma altura em que se pode tomar certas liberdades. 

É o caso dos “Ensaios Facetos” ?

Os “Ensaios Facetos” é uma piada. Na verdade, é uma alusão a uma expressão que o Camilo usou para apresentar o “Eusébio Macário”. Disse que era o primeiro da interminável série dos romances facetos, que é uma palavra que hoje ninguém usa. Ele sempre foi um escritor faceto; escreveu imensos romances cómicos, divertidos,  brincalhões, que não têm a mesma seriedade dos outros. Era uma espécie de degradação irónica na obra dele. Como eu sempre tinha escrito ensaios, achei que era engraçado esse título e depois o editor achou bem; eu até quis mudar mas o André Jorge disse que não, que ficava aquele.  

Tal como o ensaio, sendo o romance um género tão integrador, com tantas possibilidades, como é que se explica que os romances que actualmente se publicam sejam cada vez mais iguais, mais inócuos?  

A literatura é uma instituição democrática e acontece com o romance o mesmo que acontece com as crónicas. Se comparar as pessoas que escrevem hoje nos jornais, têm uma qualidade, em termos de imaginação, muito inferior ao que tinham há 30 anos. Havia pessoas mais experientes, ou mais imaginativas.  Não é que a geração de hoje seja menos capaz, mas o que se espera hoje é diferente. Há uma pressão maior, quer por parte dos jornais, quer dos leitores, para certo tipo de textos. Textos sobre a actualidade política que façam predominar a imaginação sobre a opinião não são favorecidos. E isso tem um efeito paradoxal, que é pôr as mesmas pessoas a manifestar-se em todo o lado e a dizer a mesma coisa. O sujeito vai a rádio, vai à televisão, escreve nos jornais… E a mesma coisa tem que estar escrita já numa forma que possa ser reconhecida em diversos meios. É um espaço bastante asfixiado. 

Considera que boa parte dos romances que aparecem hoje poderiam facilmente ser atirados para as margens da irrelevância ou do capricho?

Temos uma perspetiva talvez um tanto distorcida. Hoje, publicam-se muitos livros mas, proporcionalmente, se fossemos ao século XIX íamos ter uma ideia semelhante. Há dois ou três autores a escreverem bons romances e depois há outros a escrever porcarias que não têm interesse nenhum. Tendemos a comparar os romances que se publicam com os romances que sobreviveram do século XIX. A literatura não seria literatura se pusesse muitas barreiras aos que chegam.  Há alturas em que não há bons romances, mas vão aparecendo.

Acompanha, de algum modo, o que se vai publicando no campo da literatura portuguesa actual?

Não tenho nem capacidade nem curiosidade de acompanhar o que se vai publicando. E é cada vez mais difícil e os autores mais novos também sofrem uma grande pressão para publicarem mais. Quando damos por um autor novo, já ele publicou seis ou sete livros e tem metade da nossa idade, e perguntamos: “como é que isso é possível?” Temos de ter noção de que os géneros literários são muito porosos, permeáveis e tentadores.

Há no que escreve uma disposição ou predisposição humorística. Sempre o acompanhou ou devemos relacioná-la antes com os que o têm acompanhado: Camilo, Machado de Assis, Assis Pacheco, Sesinando.

Sim, eu sou uma pessoa, no meu normal,  muito piadética. Estou sempre a fazer piadas, nas minhas aulas os alunos riem-se muito, e algumas até são completamente sabotadas pela própria brincadeira. Já fui  criticado, críticas não muito acesas. Há pessoas que dizem que o humor estraga; eu por acaso não acho. É uma forma de exercício literário, de tornar as aulas interessantes por isso, por permitirem uma imprevisibilidade no discurso que permite o improviso, a livre associação. E, nesse sentido, torna a comunicação mais viva e mais produtiva, creio eu.  

E acontece-lhe, nas aulas, contrariar essa sua tendência?

Depende das circunstâncias. É um problema de disposição. Se estou na minha disposição padrão, estou permanentemente a entremear frases sérias com frases que não são sérias. Há alturas em que não tenho disposição sequer para dar aulas, ou porque estou adoentado, preocupado, ou ando desanimado. Mas o que  me acontece regularmente é ser levado para a brincadeira. Não acho que seja uma coisa suplementar, é uma questão de estilo. Uma parte das aulas são improvisadas. A própria possibilidade de fazer conexões imprevisíveis a partir de coisas previsíveis é um método de ensino, um modo de mostrar como na linguagem podemos estar sempre a passar de umas coisas para as outras. Mas também acontece que o grau de derivação humorística atinge um tal ponto que o assunto da aula desaparece e ficamos a falar de outras coisas, não sei se com prejuízo se não. Por vezes, o ambiente pode ser muito interessante mas estamos a dizer disparates. É um risco inevitável quando se faz isto. Mas a alternativa é o quê? É chegar a aula e ficar a perorar de uma forma seca? Não. Quando damos aulas de literatura estamos a falar de textos, que são para serem objecto de conversa.

O humor pode ser didáctco, nesse sentido?

Muitas vezes precisamos de dar exemplos e os exemplos humorísticos são mais interessantes, mais claros. É há uma coisa que é importante no humor, que é a disposição das pessoas. Se se rirem, se acharem graça, se perceberem, melhor.  Por alguma razão preferimos a companhia de pessoas bem-humoradas à companhia de lamurientos. O nosso ânimo perante as condições em que vivemos é melhorado pelo facto de termos acesso a motivos de riso, de brincadeira.

Entretanto, aproximámo-nos daquele terreno oposto – e sisudo –  a que se costuma chamar a literatura de colóquios. Como é que a vê?

São coisas feitas para cumprir uma obrigação. E hoje a Universidade obriga os professores a terem produção, para ficarem bem situadas nos rankings. E a produção é uma coisa que não escolhe disposição. A pessoa escreve um texto, vai a um colóquio, lê o texto mal e porcamente…  mas também não é preciso mais porque já se prevê que ninguém vai ouvir, em princípio. O texto é importante para ser publicado e ser mais um. Mesmo do ponto de vista da avaliação, a participação num colóquio vale muito menos que a participação numa revista. E ali há sempre o horizonte da publicação, o importante é que esteja publicado. A ideia de publicar em quantidade e de repetir é muita destrutiva, porque nós não temos capacidade de produzir textos originais e pensados em todas as circunstâncias. Ou se vamos fazer à medida do que conseguimos, muitas vezes é pouco. E para quem está em começo  de carreira, sobretudo em começo de carreira universitária, é muito difícil. 

Em tempos, imaginou um clube de apreciadores de George Steiner cujos membros teriam uma chapa identificadora de uso obrigatório, com a inscrição “Eu leio Steiner, e você?”, para se distinguirem dos broncos. Agora que Steiner morreu, dá ideia de que esse clube cresceu bastante. 

Era uma brincadeira que tinha a ver com a ideia da solenidade da leitura, que ainda hoje existe muito. Mas muitos leram o Steiner ou conhecem. Há muitos anos, quando Durão Barroso foi primeiro-ministro, lembro-me de se falar, durante meses, no facto de ele ter sido aluno do George Steiner, em Bruxelas, ou Genève…  Ele provavelmente esteve numa aula,  porque o Steiner não tinha propriamente alunos: a certa altura ia a uns sítios falar e as pessoas estavam lá. E isso já era dito como um sinal da cultura humanística do primeiro-ministro, do seu percurso intelectual e tal … embora depois não se tivesse visto grande resultado [risos]. Há muito que o Steiner é uma espécie de representante do intelectual ocidental que chora à beira das ruínas daquilo de que ele próprio é representante. Eu não aprecio o Steiner, nunca li nada de especial dele, nunca achei interessante, porque é sempre a mesma ideia: há uma grande cultura e essa cultura não é para todos. E insiste-se nisto: o que não é para todos, está a morrer, porque o resto, os broncos, os analfabetos, vão destruir a nossa cultura, o que é uma coisa impossível. Num programa que eu vi, ele falava de um conto do Hemingway  e referia que aquilo evocava uma cena do romance medieval. E depois dizia: isto, há 20 ou 30 anos, qualquer pessoa fazia esta comparação imediatamente, agora não, agora é preciso pôr uma nota. E o estúpido é esta ideia: se não soubermos que aquela cena evoca uma cena medieval, perdemos o interesse pelo texto do Hemingway. E não é verdade.

O próprio mundo que o Steiner evoca acaba por ir com ele.

Um dos lugares-comuns da nossa cultura é dizer que antigamente era melhor. Aquelas pessoas que gostam dos Gregos e tal, estão no seu direito, é uma maneira interessante de levar a vida, mas se nunca tivéssemos saído da Grécia, perdíamos a noção de que houve um progresso ou um retrocesso. A isso chama-se história e há muitas maneiras de a viver. A maneira lamurienta, nostálgica, que alimenta a noção de um clube de elite, não me atrai nada. Poucos conseguem ler A Antígona no original. Poucos estiveram na estreia do Frei Luís de Sousa [risos]. Esse género de distinção pelo lado acessório da cultura não me agrada. Eu tenho-me aproximado de autores [Camilo, Machado de Assis] que não têm essa visão. A imaginação deles é de tal maneira forte que a literatura que produzem é uma literatura nova, que é capaz de iluminar ou rarefazer o que está à volta de semelhante. E há autores que se vão entranhando em nós: começamos a escrever da mesma maneira, a usar o mesmo tipo de construções, de alusões… 

Foi o que lhe aconteceu com Machado de Assis. E o Camilo das polémicas? 

Era muito agressivo e hoje  não se pode ser assim. Já tive uma ou outra ocasião em que fui mais… rude e chamei uns nomes a umas pessoas e … não se pode. Mesmo quando se está a explicar porque é que  uma pessoa é estúpida, não se pode dizer que ela é estúpida. Mas a pessoa que é estúpida já teve o seu palco para demolir o trabalho de outra pessoa, como às vezes acontece. Já no tempo de Camilo ele era mal considerado pelo modo como exercia a polémica. Mas o caso dele é muito diferente: ele gostava de polémicas porque lhe dava prazer mostrar a sua superioridade; era capaz de  desfazer qualquer um.

Foi com alguns absolutamente demolidor.

Com a mesma facilidade com que se tornava amigo deles. O caso mais extraordinário é o famoso Silva Pinto a quem ele chamou cavalgadura e imensas coisas e depois construiu-lhe  uma casa para ele ir morar para o pé dele. Arranjou o empreiteiro, fez os planos e tudo. 

A polémica hoje está morta…

Polémicas hoje já não há. A última polémica de que me lembro foi entre o Eduardo Lourenço e o Vergílio Ferreira sobre o existencialismo, que depois envolveu o Eduardo Prado Coelho sobre o estruturalismo. Era a polémica de alto nível: pessoas que discordavam e trocavam ensaios a rebater argumentos.  Agora, fala-se  muito de polémica no sentido mais próximo do original: confronto, guerra de palavras. E a guerra pode ser reduzida ao seu núcleo duro: ofender e destruir. Há pessoas que até praticam isso como forma de gerar assunto. Esse género de polémicas tem pouco interesse. Por cá, também nunca foram muito consideradas, não há a ideia de que valha a pena, mais vale não  discutir, não responder, não se aborrecer. Hoje, a literatura vê-se mais como existência de talentos, de figuras. O hábito hoje é que os escritores, quando vão a feiras literárias, estejam todos juntos. Dão-se bem e tal. Depois, saem de lá e são capazes de dizer as piores coisas; faz parte. A literatura  como instituição está mais dócil, mais cordial.

Ou mais hipócrita?

A hipocrisia faz parte da própria instituição. Representa-se um papel e uma instituição literária  não pode funcionar bem se o escritor não representar o seu papel, se andarem todos à guerra. O problema é que esse lado predomina sobre outros, como há menos crítica, menos hierarquia de posições fica tudo igual. Um autor de livros irrelevantes está em pé de igualdade com um escritor  de obras notáveis, está no mesmo sítio, conversam, convivem, como se fosse tudo a mesma coisa. Essa imagem de cordialidade é que se sobrepõe ao que seja a crítica. A vida literária é tão complexa como outra qualquer e é muito difícil orientar-se nela sem ser por preconceitos. 

Houvesse, como em tempos propôs,  uma Ordem dos Críticos Literários da qual era o bastonário haveria chamadas de atenção, reprimendas, expulsões?

Nunca tivemos muitas condições para ter uma Ordem dos Críticos. Antes de mais, os críticos têm de ter condições para trabalhar. A nossa imprensa sempre foi débil e hoje é ainda mais. A crítica não tem grande expressão, já não há balanços do ano literário, que serviam para equacionar alguma diferenciação. A própria dimensão da indústria do livro tornou essas coisas impraticáveis. Os nossos jornais estão convencidos de que artigos grandes sobre livros não são populares. A evolução da vida literária assenta muito mais no lançamento, nas vendas, na televisão, que é muita destrutiva, não há espaço para grandes elaborações.  

E espaço para os muitos livros que hoje se publicam, há?

Uma das ideias mais interessantes hoje em dia que temos de abandonar é que temos de ler tudo. No livro “E Assim Sucessivamente” há um texto [“Um plano que dê dinheiro”] em que eu digo que o Estado devia dar dinheiro às pessoas que compram livros para comprarem ainda mais, desde que garantissem que não os iam ler. Entretanto,  descobri há pouco que existe uma expressão japonesa para isso, que é Tsundoku. Significa literalmente  'empilhar”, a arte de comprar livros que não se vão ler. 

Entrámos no domínio dos grandes leitores?

Exacto. Nesse texto eu defendia que o grande leitor é aquele que compra livros sabendo de antemão que não os vai ler, mas cujo interesse e a relevância reconhece. Isso é muito mais importante  do que propriamente ter o gosto de ler os livros todos. De resto, um dos tópicos de todos os escritores é contra os filisteus que entram lá em casa e perguntam: “Ena, tantos livros! Já leu isto tudo?!” Não há ninguém que não se enfureça com essa pergunta, porque, na verdade, a biblioteca não é para ler tudo, é para ela existir. O livro na verdade não existe, o que existe é a biblioteca. Um livro nunca está sozinho. E ter muitos livros em casa é muito melhor que não ter, porque mesmo que a pessoa não os leia, fica a saber a quantidade de coisas que não conhece. Em vez de lamentarmos todos os grandes clássicos que nunca vamos ler, devemos perceber é que, no fundo, nós lemos para ter conhecimento daquilo que não conhecemos, para conhecer os limites da nossa ignorância. Ora, isso também se consegue não lendo livro nenhum, mas é preciso conviver com eles. 

Como se tivéssemos de nos confrontar com aquela materialidade?

Sim.  É preciso ter uma atitude desangustiada relativamente à leitura. Uma das possibilidades é ler sempre os mesmos autores, fixar-se neles, viver com eles, frequentá-los, como o David Mourão-Ferreira dizia. Não ter medo de dizer que só se leu Clarice Lispector, por exemplo.  E qual é o mal? Alguns nem isso. A vontade de ler tudo ajuda-nos simplesmente a passar pelas coisas de uma maneira superficial e a nunca ter aprendido nada de importante com ninguém.  A ideia do Tsundoku é importante. Não podemos ficar especializados num autor e ignorar todos os outros, mas há maneiras diferentes de ignorar todos os outros. Mas não é um livro importantíssimo? É. Se um dia eu estiver doente ou for preso [risos], eu prometo que leio.  Hoje, que a literatura não tem já um lugar central na vida intelectual portuguesa, precisamos de ter outro modo de nos relacionarmos com os livros, que nos liberte. Não podemos continuar a ter uma relação com a literatura que seja coerciva, que nos retire a liberdade que ler livros significa.  Um dos exemplos dessa coerção é o modo como se ensina a literatura. 

Este seu novo livro incluí  um texto que incide justamente sobre a solenidade da leitura, e, por outro lado, a literatura entendida como uma espécie de punição.

Esse texto foi escrito para um número da revista Ler, inteiramente dedicado a “Os Maias”. É uma brincadeira em volta  do modo como “Os Maias” são ensinados, que é uma forma de coação que dispensa na verdade a leitura. Se a pessoa souber quais são os sinais da tragédia, os indícios do incesto, isso basta para passar. A estrutura do programa  prevê exactamente isso, estimula-o até. Mas a literatura não é isso. Não podemos ler livremente todos os textos do programa. É um problema sério que a Escola tem mas é apenas uma parte do problema que temos hoje com a literatura. Não podemos ler tudo o que se publica hoje, mas não podemos ignorar que se publica tudo. Temos de ter maneira de perceber porque é que se publicam tanto livros e continuar a ler os nossos. 

Este é um livro sobre as possibilidades do humor?

O livro exemplifica uma das possibilidades do humor.  Eu tinha um sonho antigo, que era fazer uma miscelânea. Qualquer pessoa que conheça a obra do Camilo acaba por fica apaixonada pela ideia de miscelânea. Hoje, temos compilações de ensaios, espera-se que tenham uma certa unidade, nem que seja “ensaios de crítica literária”, mas não temos livros em que o autor publique poemas, um conto, uma nota necrológica, por ex., um esboço de uma peça de teatro e que junte tudo. Hoje, os géneros estão muito limitados. O Camilo fazia isso. Há um livro dele com um título  maravilhoso,  “Boémia do Espírito”, em que o espírito anda a vadiar. Tem artigos bibliográficos, artigos de erudição, de história, etc.  Mas depois disso não houve mais. Hoje em dia, os livros têm de estar bem tipificados, para que o leitor tenha de antemão algo sobre o que vai ler. 

A miscelânea só é praticável como possibilidade humorística?

Hoje em dia uma miscelânea só pode ser uma imitação de miscelânea, é uma coisa humorística.  Tentei juntar textos de natureza diferente: uma palestra sobre a carta de condução, diálogos ficcionais vincadamente humorísticos em que a matéria é quase sempre literária, um ensaio que só aparentemente não é humorístico… 

É aquele que se dedica à dor de cotovelo?

Sim. A hipótese do ensaio é que a dor de cotovelo impede a tragédia por ciúme; se a pessoa diz “dor de cotovelo” é porque já não vai matar a mulher. A ideia de base do ensaio é uma ideia humorística, mas o paralelo é ensaístico em sentido pleno: uma comparação entre a dor de cabeça de Otelo e a dor de cotovelo do diplomático. A dor de cotovelo é uma dor irrisória, corriqueira, sem grandeza. E nesse terreno não existe o trágico.   

Obnóxio não é propriamente uma palavra de uso comum…

Em 1987, usei a palavra pela primeira vez. Encontrei, por mero acaso, um ensaio que eu escrevi, ainda estudante, que registava um “hemistíquio obnóxio”. Achei graça e passei a usar muito e noto que as pessoas ficam alerta. O título é um aparelho para medir os leitores, pode ser um índice da repercussão que o livro tem.  Se por hipótese (uma fantasia minha), começasse a aparecer 'obnóxio' escrito em todo lado – “o primeiro-ministro considera obnóxio …” [risos] –  é porque estou a ter muitos leitores. É um título favorável, nesse sentido. No “Obnóxio do Dicionário” há uma fantasia: há um dicionário que não tem a palavra 'obnóxio', o que significa que podemos usar a palavra  para substituir, em alternativa, essa ausência; o que quer dizer que estamos livres para  dar à palavra o conteúdo que entendermos. A ideia, aí, é usar 'obnóxio' no sentido próximo do que ele tem em inglês mas  transformá-lo noutra coisa. A parte central do livro são essas conversas em que há sempre algo de obnóxio, ou porque as pessoas se preocupam em discutir coisas que não têm importância nenhuma, ou porque um quer discutir uma coisa importante e o outro desconversa e a desconversa torna-se obnóxia, ou porque alguém está aborrecido e simplesmente não está para conversas, ou porque a própria conversa está tão virada sobre si própria que acaba por não ter conteúdo.

Esses diálogos chegam a abastecer  no grande reservatório do lugar-comum.

Nesses diálogos, há frases banais que ganham desenvolvimentos inesperados; há frases inesperadas; Podem partir de uma frase que eu apanho na imprensa, por ex: “Eu sou um homem que prefere ler” [risos]. O lugar-comum é aquilo que me irrita mais, o que me repugna, é sintoma de falta de imaginação.  Não tenho nenhuma aversão especial aos erros de linguagem, não gosto de corrigir as pessoas, até porque é muito penalizador do ponto de vista social. Agora com o lugar-comum e com a falta de imaginação tenho pouca condescendência, entristecem-me.