A caminho do final da segunda década, o custo da habitação já ocupa um lugar cimeiro entre as subidas de preços do milénio em Portugal. Em algumas freguesias de Lisboa e do Porto, os preços subiram 40% nos últimos anos, com o turismo a ter a quota maioritária das responsabilidades. Longe de ser um problema que pudesse ser contido pelas muralhas dos bairros históricos, alastrou como um vírus para as periferias das maiores cidades e fez disparar preços em concelhos como Amadora, Loures ou Almada.
"Risco" e "lucro" foram as palavras-chave desta nova dinâmica económica, que conta com acérrimos defensores entre os governos passados e presente. A lei dos despejos com que Assunção Cristas abandonou os inquilinos aos azares do mercado, os vistos gold que premeiam a especulação com uma autorização legal de entrada no país e na Europa, um regime fiscal incapaz de distinguir especulação, turismo e direito à habitação… Nada foi por acaso. O mercado de habitação foi deliberadamente aberto e desregulado para se converter na autoestrada de capital estrangeiro.
Uma casa degradada com um inquilino de 75 anos passou a ser uma “excelente oportunidade de investimento”. Um prédio de fachada renovada faz-se pagar um terço mais caro tão rápido quanto o tempo em que os pintores conseguirem acabar o trabalho. Consegue-se por milagre um T0 que encaixe no orçamento de um salário mínimo. Mas, nesta novilíngua, isso é apenas a cidade a ser competitiva, o sonho de Adolfo Mesquita Nunes.
É por isso que o ex-secretário de Estado e outras vozes dentro e fora do CDS ainda não acalmaram os nervos desde que o Bloco anunciou a negociação de uma taxa contra a especulação imobiliária. Nos últimos dias multiplicaram-se em declarações e artigos com dois argumentos principais. Uma das tentativas é acusar o Bloco de querer entrar numa competição moral, a outra é mostrar por "a mais b" que combater a especulação imobiliária não é a melhor forma de… combater a especulação imobiliária.
O primeiro afasta-se pelo currículo de cada uma das forças em presença. O CDS bem pode querer colar o nome do ex-vereador Robles à proposta do Bloco, como antes já me fez homónima de um imposto. O Bloco é tão fiel a si próprio ao sair em defesa do direito à habitação quanto o CDS ao proteger o negócio imobiliário. Nenhum sound bite, por muito criativo que seja (e este não é), retira o apelido Cristas à lei que mais despejou pessoas neste país para entregar casas à especulação. Suponho que tenha sido esta a inspiração de João Almeida para sugerir uma taxa de “falta de vergonha na cara”.
O segundo argumento desdobra-se sempre que se fala em controlar o mercado de habitação. De todas as medidas que possamos apresentar para conter a especulação – colocar casas a preço acessível, regular e controlar o alojamento local, dificultar os despejos, promover o arrendamento a longo prazo, congelar preços – , por mais bem preparadas que estejam, há sempre quem venha dizer que não é isso que resolve o problema, que as medidas são inúteis, e acusar o Bloco de demagogia.
É areia que entra nos olhos de poucos. Até Rui Rio compreende que o Estado “às vezes deve intervir para ajudar a regular o mercado”, que “segundo as teses liberais ajusta tudo, mas com custos sociais brutais”. Os custos sociais “brutais” a que se refere Rui Rio já estão à vista na forma de uma enorme crise no acesso à habitação que, se não for travada, terá efeitos devastadores na nossa estrutura social. Está a crescer uma geração de jovens trabalhadores para quem o conceito de ter uma casa é uma abstração.
A proposta apresentada por Catarina Martins de criar um mecanismo fiscal para taxar a especulação, sujeitando a uma taxa especial quem compra e vende num curto período de tempo e com muito lucro, não resolve todos os problemas de habitação do país. Mas tem efeitos imediatos. Desde logo no arrefecimento da dinâmica especulativa, o mercado de “risco” e “lucro” dos fundos imobiliários que está completamente vedado às pessoas e famílias que só querem uma casa para viver.
Mas a proposta é importante também por razão de justiça fiscal. E essa é aquela que a direita não perdoa. Como explica o editorial de ontem do “Público”, “seria abrir uma perigosa caixa de Pandora. Se aplicada no imobiliário, poderia mais tarde incidir sobre o mercado de capitais ou sobre os lucros das empresas”. O pesadelo de Adolfo Mesquita Nunes.
No meio de tanta indignação, é difícil encontrar um argumento contra a proposta do Bloco que escape ao fundamentalismo ideológico que recomenda paz nos negócios e fé nos mercados. A mesma lógica já nos meteu numa crise sem precedentes e não fez nada para nos tirar dela. Que a direita continue agarrada a esse desastre, nada de novo. Ao PS, que deveria compreender melhor a natureza da nossa recuperação económica, pedia-se pelo menos que tivesse a responsabilidade de ouvir e negociar.
Deputada do Bloco de Esquerda