Tendo assinado recentemente dois artigos que abordaram o tema do pacifismo – um deles referiu o apelo do Papa Francisco, que decidiu, no final de 2017, alertar-nos para a amargura do fruto da guerra, o outro evocou o pacifismo de Albert Einstein –, confesso um sensível desconforto ao escrever sobre os acontecimentos que carregaram estes “Idos de março” de 2018. E este desconforto tem na origem o extremar de posições na arena internacional: no limite, a voz que apela a que se contemple também a perspetiva do adversário soa, quando rufam os tambores da guerra na sua hoste, algo constrangida.
A leitura do artigo “Tropeçando numa guerra com a Rússia” (Dave Majumdar, “The National Interest”, 26.3.2018) acabou por dar o impulso para a escrita destas linhas. Tome-se como mote o parágrafo final daquele artigo:
“De facto, poderá ser necessária uma nova versão da Crise dos Mísseis em Cuba, de 1962, para que o establishment da política externa norte-americana tome plenamente consciência de como é perigosa uma confrontação com uma grande potência rival dotada de armas nucleares. “Repugna-me dizê-lo, mas poderia ser uma boa coisa”, disse Michael Kofman [um especialista citado por Majumdar]. “Penso que, de facto, uma crise poderia revelar-se benéfica para que todos nós amadurecêssemos”.
Compreende-se parcialmente a lógica deste juízo, que remata um artigo de qualidade numa revista respeitável – trata-se de um bimestral associado com a linha “realista” da política externa norte-americana. No entanto, insinua-se esta inquietação suplementar: deverá confiar-se no discernimento e na “coolness of head” de Donald Trump, o decisor supremo que substituiria John Kennedy na circunstância? Karl Marx afirmou que a História se repete, sucedendo a farsa à tragédia. Teme-se, no caso presente, que a tragédia sucedesse ao drama de 1962.
Passe-se então ao comentário de alguns pontos notáveis deste perturbador março de 2018.
Discurso de Vladimir Putin perante as duas Câmaras da Federação Russa (1.3.2018)
Os primeiros dois terços das duas horas do discurso anual sobre o estado da Nação centraram-se na política interna. Já o último terço foi essencialmente um alerta ao resto do mundo: a Rússia jamais desistirá de manter a paridade estratégica com os EUA. O aperto do orçamento russo e a liberdade em relação às ortodoxias do passado contribuirão, certamente, para a maximização do potencial dissuasor por rublo despendido. O quadro temporal detalhado não é aqui o fundamental, nem tampouco o pormenor técnico de uma ou de outra arma em particular. O que conta é a vontade obstinada que a Rússia tem, e com toda a probabilidade manterá, de falar de igual para igual no domínio estratégico nuclear com o seu “parceiro” do outro lado do Atlântico.
A conversa de Valeri Gerasimov com Joseph Dunford (13.3.2018)
Nessa terça-feira, Gerasimov (Chefe do Estado-Maior Russo) avisou que qualquer bombardeamento que provocasse baixas militares russas – que seriam bastante prováveis caso os bairros governamentais de Damasco fossem alvejados por mísseis norte-americanos – desencadearia uma resposta militar russa que visaria não somente esses mísseis mas também as plataformas de onde eles tivessem provindo. Este aviso não foi feito por via confidencial; pelo contrário, foi publicitado em canais de televisão oficiais da Rússia, tornando assim eventuais recuos mais problemáticos. Aparentemente, uma repetição do lançamento dos 59 tomahawks em abril de 2017 não ficaria desta vez sem resposta russa. Longe de ribombar como uma tirada hiperbólica de Vladimir Jirinovski ou de qualquer outro político inflamado, a ameaça foi proferida em tom calmo por alguém que está sob o controle imediato de Putin. O contacto telefónico estabelecido nesse mesmo dia por Dunford – o homólogo norte-americano de Gerasimov – desativou uma situação que poderia ter-se tornado rapidamente explosiva.
Eleição para a Presidência da Federação Russa (18.3.2018)
O resultado obtido por Putin – 76,69% de votantes, com uma taxa de participação do eleitorado de 67,54% – só pode ser considerado um triunfo pessoal daquele candidato. É claro que a eleição não seguiu os padrões habituais de uma democracia ocidental; tratou-se antes de uma eleição plebiscitária. As fraudes, que certamente existiram, terão sido menores do que em eleições anteriores. Verificou-se um cerrar de fileiras transversal a todas as classes etárias e o efeito Skripal, a ter-se verificado, terá potenciado o resultado de Putin. Não considerar que a Rússia apoia essencialmente o seu Presidente no momento atual, ou divergir para a análise prospetiva de um período pós-Putin quando se inicia um novo mandato presidencial de seis anos, seria um colossal erro de julgamento por parte do Ocidente.
O Caso Skripal (4.3.2018 – em desenvolvimento)
No dia 4 de março, Sergei Skripal e a sua filha Yulia, dois cidadãos russos, foram acudidos num centro comercial de Salisbury (cidade provincial do sul de Inglaterra) ao mostrarem sinais de profunda desorientação. No dia seguinte as autoridades inglesas confirmaram suspeitas de envenenamento dos dois Skripal, entretanto hospitalizados. Boris Johnson, apontou nesse mesmo dia a pista russa – note-se que Sergei é um espião duplo “quite” desde 2010, quando foi recebido em Inglaterra como moeda de troca por uma série de agentes russos identificados como “sleepers” nos EUA.
No dia 12 de março, Theresa May denunciou a origem russa do veneno utilizado contra os Skripal e lançou um ultimato à Rússia para que se justificasse até às 24 horas do dia seguinte. A Rússia negou veementemente qualquer responsabilidade e pediu uma investigação conjunta com as autoridades inglesas, que foi recusada.
Desde então o assunto atingiu uma dimensão inusitada, levando à expulsão conjunta de diplomatas por uma boa parte dos países ocidentais. A prometida resposta russa não demorou muito tempo a chegar, medida por medida.
O que pensar de tudo isto? Para além de consternação, por ver-se o “diálogo de megafone” amplificar-se estridentemente, restam várias perplexidades. O que teriam as autoridades russas a ganhar com o desencadear deste caso a menos de três semanas da eleição presidencial e, sobretudo, a cerca de três meses do arranque do campeonato mundial de futebol, a realizar na Rússia? Para além disso, na obscura ética da espionagem, um “agente quite” é supostamente intocável; mais o seria a sua filha Yulia. O abandono da “deontologia da espionagem” – caso tal conceito possa ser contemplado – não repugnaria a um verdadeiro profissional? Recorde-se que Putin foi agente do KGB entre 1975 e 1991, onde subiu à patente de tenente-coronel; em 1998, já lançado no percurso para o poder supremo, ascendeu à direção do FSB (a organização sucessora do KGB).
E não poderá ter tido o caso origem em células extremistas nas forças de segurança russas, que veriam com bons olhos o exacerbar das tensões internacionais, com vista a “empurrar a mão” a Putin e induzir o endurecimento da atitude deste para com o Ocidente?
Por outro lado, recorde-se, por exemplo, que a maior fábrica de mísseis intercontinentais da URSS – a Yuzhmash, em território ucraniano (cf. artigo de Simon Shuster na “Time” de 12.2.2018) – fugiu ao controlo de Moscovo. O que se terá passado, no conjunto das ex-repúblicas soviéticas, com as instalações de armas químicas, armas inerentemente mais miniaturizáveis e transportáveis?
Regressemos à Câmara dos Comuns, no dia 12 de março, quando Jeremy Corbyn tentou, em contraponto a Theresa May, apelar aos bons princípios da Justiça de Sua Majestade Britânica: equanimidade e ponderação, cautela processual e respeito pelos factos. E eis que o chefe da oposição ficou de imediato em posição incómoda, perdendo no mesmo momento o apoio de uma boa parte da sua bancada. Mas, que força parlamentar poderiam ter as cautelas de Corbyn face às tiradas e poses churchillianas de Boris Johnson, ansioso este por reviver os idos gloriosos da resistência ao hitlerismo? Finalmente, a atitude mais reservada de Corbyn resultaria parcialmente vindicada, quando, já no dia 3 de abril, o laboratório britânico encarregue de averiguar a proveniência russa do veneno utilizado se declarou incapaz de a estabelecer, limitando-se a apontar a alta probabilidade de o produto ser de fabrico militar.
Contudo, o vendaval político causado pelo caso Skripal já acumulara entretanto estragos na esfera diplomática que demorarão longo tempo a reparar. Com efeito, o que se ganhou com a expulsão de cerca de centena e meia de diplomatas de cada lado da contenda, quebrando assim antenas sensíveis às vibrações políticas e sociais no terreno do adversário, quando, precisamente, há que estar alerta para estas?
No atrás citado artigo de Mujamdar, é referido um encontro organizado pelo Center for the National Interest em 26.3.2018 (o registo pode ser visto no YouTube). Nele foi colocada a seguinte questão a um pequeno painel de especialistas em segurança: numa escala de um a dez, qual a verosimilhança de um conflito armado (não necessariamente nuclear) entre os EUA e a Federação Russa (na Síria ou em qualquer outro local do mundo)? As três respostas referidas no artigo não são tranquilizadoras: seis; seis ou sete; cinco.
Michael Kofman, o especialista que ponderou a hipótese de conflagração em seis ou sete em dez, reconheceu com preocupação que a comunidade de segurança nacional em Washington se desabituou de lidar com os conceitos de dissuasão e de gestão de confrontações entre rivais dotados com armas nucleares. Talvez os hábitos induzidos no último quarto de século pela inexistência de rivais globais e pela excessiva focalização na luta contra o terrorismo tenham levado os EUA a um relativo nível de imaturidade na gestão da confrontação entre grandes potências, precisamente quando esta se reacendeu. Concorda-se plenamente com esta opinião. Já que entrámos numa segunda Guerra Fria – infelizmente, tudo leva a supô-lo –, há que “pousar o megafone” e reaprender as velhas atitudes que ajudaram durante quase quatro décadas a manter a primeira Guerra Fria dentro de limites convencionalmente aceitáveis. Afinal, foi essa frieza sóbria que assegurou a nossa sobrevivência durante aquelas décadas.