“O talento científico de Einstein e a sua habilidade técnica não eram de nenhuma forma espetaculares, mas, bem pelo contrário, ultrapassados por mais do que um dos praticantes da arte. No sentido estrito, pode bem dizer-se que Einstein não tinha um dom especial para a ciência. Caracteristicamente sua era aquela prodigiosa finura sem a qual a mais apaixonada curiosidade teria permanecido ineficaz: essa autêntica magia que transcende a lógica e que distingue o génio da massa dos outros homens – que, com maior talento, têm menos valor…”
Este juízo consta da excelente biografia de Einstein escrita pelo físico Banesh Hoffmann, em colaboração com Helen Dukas, “Albert Einstein, Creator and Rebel” (1972). Ambos conheceram o grande físico bem de perto: o primeiro privou cientificamente com ele em Princeton e assim teve a oportunidade de testar os limites da “inteligência algorítmica” do seu mentor; a segunda foi a secretária pessoal e de alguma forma a governanta de Einstein ao longo de quase três décadas, e, após a morte daquele, sua zelosa testamenteira. O próprio biografado fora ainda mais sucinto na sua autoanálise: “Deus deu-me a teimosia de uma mula, mas também um fino olfato”. Juntem-se-lhes o espírito artístico, o verbo imaginativo e despretensioso, tantas vezes nimbado de ironia, e compreender-se-á facilmente a razão da popularidade de muitos dos aforismos de Einstein. Não foi o grande Albert considerado pela revista “Time” [31.12.1999] como a personalidade do século XX?
Assinale-se o recente anúncio do “Bulletin of the Atomic Scientists” (publicação de que Einstein foi colaborador de primeira hora): o aparentemente pequeno, mas significativo, avanço do Doomsday Clock em meio minuto, colocando-o assim a dois minutos da fatídica meia-noite, simbolizando esta o holocausto nuclear. Desde 1947, os sucessivos avanços e recuos dos ponteiros daquele relógio têm pautado o correspondente toldar ou desanuviamento da situação internacional. Registe-se como, preocupantemente, desde 1995 o Doomsday Clock tem sofrido unicamente avanços, suspendendo-o a dois minutos da meia-noite, mínimo só verificado no período de 1953-1960, em plena Guerra Fria.
Assim, torna-se oportuno recordar aquela que foi uma verdadeira tónica nas intervenções de Einstein, homem público: o seu inveterado pacifismo. Três datas, todas elas significativas na História do século XX, foram marcos na percetível evolução da atitude de Einstein: 1914 – que viu a eclosão da Grande Guerra; 1933 – ano da subida de Hitler ao poder; 1945 – marcado pelas duas explosões atómicas sobre o Japão.
1914: três contra a centúria
No mês de agosto de 1914, muitas capitais europeias saudaram o começo das hostilidades com grande entusiasmo patriótico. Assim, dois meses mais tarde, não terá sido difícil reunir as assinaturas de quase uma centena (93) de personalidades da vida cultural alemã em apoio de um manifesto que enfaticamente tentava desculpabilizar a Alemanha e o seu Kaiser da responsabilidade no desencadear da guerra ou de qualquer comportamento criminoso no decurso da então recente ocupação da Bélgica pelas tropas alemãs. Cientistas, literatos e artistas de renome coassinaram o manifesto. Dez deles haviam sido galardoados com o Nobel e a lista incluía vários judeus, entre os quais dois dos conselheiros mais ouvidos pelo Kaiser, sendo Walther Rathenau um deles. No entanto, no meio dessas justificações figurava já naquele manifesto, qual “ovo da serpente”, uma frase do seguinte teor: “Aqueles [essencialmente, a França e o Reino Unido] que se aliaram com os Russos e os Sérvios, e que deram ao mundo o vergonhoso espetáculo de incitarem os Mongóis e os Negros contra a raça branca, não têm qualquer direito de se autodenominarem defensores da civilização”.
Einstein, já então um membro respeitável da comunidade científica alemã, recusou-se a assinar o «Manifesto dos 93». Em contrapartida, disponibilizou a sua assinatura para um “Manifesto aos Europeus”: um texto pacifista que não chegaria a ser publicado, dado o magro apoio que suscitou: um total de três assinaturas!
Note-se que Einstein acabara de conquistar no início daquele mesmo ano uma invejável situação profissional e que o seu prestígio estava ainda então limitado ao meio científico. Com justiça, a sua atitude corajosa, tomada a contracorrente do entusiasmo nacionalista que inflamara a grande maioria dos colegas, iria facilitar a eclosão brusca da sua celebridade mundial após a derrota da Alemanha. Tal celebridade teve origem num artigo do jornal “Times” de Londres (7.11.1919), seguido de outro no “New York Times”, que reportava uma confirmação experimental da teoria relativista da gravitação, completada quatro anos antes e que era considerada como a maior contribuição para a Física Teórica desde Newton. De um dia para outro, o mundo retinha a peculiar figura de um cientista que, através dos seus dons superiores de abstração e de virtuosismo matemático alterara, como um verdadeiro demiurgo, a própria tessitura do espaço e do tempo. Talvez a lassidão coletiva sentida no final da Grande Guerra tivesse predisposto a sociedade para a contemplação de algo mais elevado.
Na primavera de 1921, Einstein efetuou uma viagem aos Estados Unidos em apoio da Causa Sionista. Com a conivência da imprensa norte-americana, o périplo do físico tornou-se um acontecimento e fez dele uma verdadeira celebridade mundial. A partir de então sua a opinião sobre os mais variados assuntos tornou-se o alvo da maior curiosidade.
A correspondência epistolar com luminares de então trata muitas vezes da questão da Paz. As ações do Mahatma Gandhi, desenvolvidas por esses anos, ganharam a sua admiração consistente (ao ponto de um retrato do líder indiano vir a decorar o seu estúdio em Princeton, acompanhando os de Faraday e de Maxwell, os criadores do conceito do campo físico, talvez a ferramenta mental por excelência de Einstein).
Em 1931, o Instituto para a Cooperação Intelectual (afiliado à Sociedade das Nações) convidou Einstein para encetar uma troca de ideias por escrito sobre a política e sobre a paz com uma personalidade à sua escolha. Sigmund Freud foi o eleito e o diálogo desenvolvido pelos dois homens daria origem em 1933 – ano fatídico – ao livro “Porquê a Guerra?”
Em circunstâncias menos conturbadas, o apoio moral que Einstein tentara dar ao regime de Weimar, ao longo da década de 1920, poderia ter sido um contributo de monta. Figura destacada da vida berlinense, o físico disponibilizou-se para ações simbólicas de boa vontade e de reconciliação entre os adversários da Grande Guerra. No entanto, a essência suave da tolerância e da racionalidade estava destinada a volatilizar-se no caldeirão de sentimentos desencontrados da alma germânica. Aliás, o limite à intervenção de um judeu na política alemã tinha sido marcado pelo assassínio de Rathenau, em 1922. Esse verdadeiro talento multifacetado – herdeiro do império industrial AEG, financeiro reputado, doutorado em Física, pianista competente e, sem surpresa, conviva de Einstein – acrescentara ao sucesso material e intelectual o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e pagou por isso com a vida.
1933: o pacifismo absoluto deixa de ter sentido
Se até 1924 a vida política alemã foi extremamente conturbada (o célebre putsch de Hitler ocorreu em novembro de 1923), o período seguinte, até ao final da década, assistiu a uma distensão. Contudo, no final de outubro de 1929, o colapso da bolsa nova-iorquina iria implicar uma severa crise económica que toldaria a vida política internacional, encetando os sombrios anos trinta. O período de 1930 a 1933 assistiu à surpreendente ascensão política de Hitler. Quando este foi nomeado chanceler (30.1.1933) Einstein encontrava-se fora da Alemanha para nunca mais regressar ao seu país natal.
O facto de um antissemita mais enraivecido ter chegado a oferecer um prémio pela eliminação física de Einstein dá-nos a medida do espírito conturbado daquela época. Ao atravessar o Atlântico rumo aos EUA, abandonando a velha Europa para sempre no final de 1933, Einstein fugira a um perigo bem real, tendo, quiçá, evitado o destino de Walther Rathenau. Aliás, alguns familiares seus acabariam por perecer no Holocausto.
Como tantos outros intelectuais, Einstein mostrou incompreensão pelo poder de atração demoníaco do Nazismo sobre os seus concidadãos. No entanto, se bem que de início tivesse encarado Hitler como demasiado radical e primitivo para se poder assenhorear da Alemanha, uma vez o facto consumado, Einstein tornou-se de imediato apologista de uma resistência determinada à previsível agressão alemã à Europa, apartando-se do movimento pacifista tradicional.
É nesta veia que, em conjunto com Leo Szilard, envia em agosto de 1939 ao Presidente Roosevelt uma célebre missiva alertando para a hipótese alarmante de os nazis desenvolverem uma arma nuclear. A carta apelava a que os norte-americanos começassem sem delongas o seu próprio projeto.
Talvez a fama de Einstein como pacifista progressista tenha desaconselhado a sua contratação à direção militar do Projeto Manhattan. Este arrancaria em pleno no final de 1941, envolvido no maior secretismo. No entanto, entre 1943 e 1946 o físico colaborou com a marinha dos EUA num trabalho relativo a explosivos convencionais. Confira-se assim para onde a premente luta contra a tirania nazi relegara o pacifismo de antanho.
Após 1945, quando a enormidade dos crimes do regime nazi foi conhecida em toda a sua extensão, o corte emocional com a sua Alemanha natal tomou um cunho irreversível. Uma severidade inapelável apoderou-se então da sua alma, ao contrário da compaixão demonstrada no início dos anos vinte, face às injustiças que o espírito vindicativo de Versailles infligira à Alemanha. Desta vez, nem mesmo o plano Morgenthau, que teria inaceitavelmente privado a Alemanha da sua infraestrutura industrial, base da sua subsistência, lhe pareceu excessivo.
1945: “O weh!”
“O weh!” – tal foi a interjeição de Einstein (a expressão alemã designa desapontamento e corresponderá a um «Deus meu!») quando, na manhã de 6 de agosto de 1945, recebeu a notícia da explosão atómica sobre Hiroxima. Einstein foi surpreendido pela possibilidade de miniaturização da arma atómica, que permitira o seu lançamento de avião sobre uma cidade, com a letalidade consequente.
Como já foi referido, nesse mesmo ano de 1945, apadrinhou, em conjunto com vários cientistas do Projeto Manhattan, a criação do “Bulletin of the Atomic Scientists”. Nos dez anos que se seguiram até à sua morte (18.4.1955), Einstein seria infatigável nos alertas perante a ameaça nuclear. Como justa coda à sua vida de pacifista, um manifesto que apelava à concórdia internacional face ao perigo da aniquilação – conhecido como Manifesto de Russell-Einstein, embora reunisse dez Prémios Nobel num total de onze assinaturas – foi o último texto a ter assento sobre a sua mesa de trabalho.
Já referimos como os aforismos de Einstein captaram a imaginação de tantos de nós. Assim, escolhem-se alguns que resumem com simplicidade a sua atitude perante a grave e perene dualidade da paz e da guerra.
“As raízes psicológicas da guerra têm, na minha opinião, origem nas características agressivas da criatura do sexo masculino”. (1915) Triste, controverso (especialmente nestes tempos em que o masculino e o feminino tendem a ser confundidos), mas terrivelmente verdadeiro.
“Não acredito que a civilização venha a ser erradicada numa guerra travada com a bomba atómica. Talvez dois terços da população mundial perecesse, mas um número suficiente de homens pensantes e de livros ficariam disponíveis para recomeçar e a civilização seria restaurada”. (1946) A arma termonuclear, surgida meia dúzia de anos mais tarde, poderia levar Einstein a retractar-se, pois o poder destrutivo dela é várias ordens de grandeza superior à arma conhecida em 1946. Apesar de tudo, a previsão poderá aproximar-se da realidade. Possivelmente, no período posterior à hipotética conflagração, a ciência seria vigiada ou mesmo erradicada como erva daninha. Esse mundo, no qual poderia repetir-se um episódio semelhante ao de Galileu face à Inquisição, seria, decerto, abominável a Einstein.
“Desconheço como será travada a Terceira Guerra Mundial, mas posso afirmar-lhe quais serão os utensílios da Quarta – pedras!” (1949) Uma nota de humor negro, mas que lança justificadas dúvidas sobre a rapidez de recomposição e o nível da civilização desse hipotético pós-guerra.
Mas, com o Doomsday Clock a dois minutos da meia-noite, o assunto é demasiado sério para acabar-se em tom de ironia. Assim, cite-se Albert Einstein (1945) mais uma vez, e sem comentários: “As balas matam os homens, mas as bombas atómicas matam as cidades. Um tanque é uma defesa contra uma bala, mas não há defesa contra uma arma que pode destruir a civilização… A nossa defesa consiste na lei e na ordem”.
Professor universitário