Alguns filmes, seja devido ao tema, aos atores, seja pela magia que se apoderou das equipas que os produziram, seja ainda pela controvérsia que enfrentaram quando exibidos, marcam uma época e ganham, por isso mesmo, perenidade. “Anatomy of a Murder”, realizado por Otto Preminger em 1959, é justamente considerado por muitos como o mais perfeito exemplo de filme centrado nos procedimentos legais em tribunal americano. A obra foi nomeada para vários óscares em 1960, em particular para o de melhor filme, não alcançando qualquer um. Em boa verdade, um filme envolvido em várias polémicas e cuja produção tivera que pactuar com a autoridade censória da Production Code Administration não podia aspirar a muitos óscares no preciso ano em que “Ben-Hur” arrecadava nada menos do que onze.
Baseado num caso real ocorrido em 1952 na Upper Peninsula do Michigan, região onde as filmagens foram feitas, o enredo bem como os diálogos são claramente risqués para os padrões da Hollywood de então. Pressente-se a mão europeia do realizador a testar os limites da censura: Preminger fora uma figura de destaque na sofisticada vida teatral austríaca do período entreguerras e, sendo de origem judaica, aportara em boa altura à Broadway e a Hollywood em meados dos anos trinta. O realizador tinha cursado Direito em Viena e era filho de um jurista de renome, conhecido pela sua integridade e independência de espírito. Certamente, todos estes fatores – não esquecendo que a produção de “Anatomy of a Murder” coube ao próprio Preminger – contribuíram para que o filme fosse tão bem conseguido.
Debrucemo-nos sobre as personagens do juiz Weaver e do advogado de defesa Biegler, desempenhadas, respetivamente, por Joseph Nye Welch e por James Stewart. Weaver irradia humanidade e bonomia, que assentam bem à sua senioridade. Revela igualmente firmeza – como compete a um bom juiz – quando tenta domar a impetuosidade de Biegler. James Stewart, no papel deste advogado, é mais uma vez inexcedível como incarnação da decência anglo-saxónica, combinando aquele inimitável misto de self-reliance, shrewdness, and candour que dão perenidade às suas representações. Weaver denuncia ao longo do filme uma contida parcialidade emocional, que não processual, para com Biegler. Este acabará por levar a melhor sobre um procurador um pouco limitado e convencional, assessorado por uma acutilante estrela jurídica de nome Dancer (papel desempenhado por George C. Scott), que será o verdadeiro derrotado na contenda.
No lance final, enquanto aguarda pelo veredicto do júri, o advogado Biegler distende-se improvisando jazz ao piano. A seu lado, o colega e ajudante legal McCarthy (um alcoólico em remissão, desempenhado por um Arthur O’Connell encantador) divaga sonhadoramente sobre a glória do sistema legal americano, em particular sobre a forma misteriosa como os elementos de um júri – doze cidadãos anónimos – acabam por chegar a uma decisão unânime e que, na maior parte dos casos, se revela acertada. McCarthy remata “God bless juries!” antes de o telefone apelar ao regresso à sala de audiência. Aí, o júri comunica ao juiz Weaver a absolvição do réu, na base de este, assassino confesso do violador da sua mulher, ter atuado sob a influência de um “impulso irresistível”, uma variante da fórmula de “insanidade temporária”.
Poucos dias mais tarde, quando o advogado Biegler tenta contactar o casal reunido após a absolvição, com a intenção de conseguir algo que se assemelhasse a uma promissória de pagamento, eis que aquele tinha abandonado o parque de caravanas onde vivia. O instável e ingrato recém-absolvido deixara uma nota de despedida onde escrevera, não sem ironia, que tinham arrancado do local sob a força de um “impulso irresistível”. Teria o júri decidido erradamente? Deus saberá…
“Anatomy of a Murder”, um filme de tribunal que foge a todos os clichés, torna-se fascinante pela empatia com que acompanha o evoluir da Justiça ao longo de um processo que não deixa de pôr a nu a fragilidade humana em inúmeras facetas. O filme abriu terreno para o tratamento mais adulto e menos convencional de temas até então considerados tabu.
No entanto, as ideias políticas do seu cabeça-de-cartaz, James Stewart, estavam bem longe de fazer dele um “liberal”, apoiante convicto que foi do Partido Republicano ao longo de múltiplas candidaturas presidenciais. Muitos desconhecerão que o célebre ator empreendeu duas dezenas de ações de bombardeamento sobre a Alemanha Nazi. Tais missões implicavam enormes riscos e a uma série de vinte correspondia uma alta probabilidade de morte em combate – a tensão acabou por induzir um síndrome de stress pós-traumático que acompanharia Stewart para o resto da vida. Defendeu acirradamente o envolvimento americano na Guerra do Vietname, mas não sem ter visto o seu filho adotivo e enteado nela morrer em combate. Em suma, fossem quais fossem as suas ideias políticas, James Stewart era tudo menos um impostor.
Passemos ao nome menos conhecido de Joseph Nye Welch. Há uma boa razão para tal: Welch não era um ator profissional, mas antes um advogado; a sua notoriedade – e, sem dúvida, a razão para Preminger o ter convidado para o papel de juiz – derivou da atitude por ele tomada na vida real meia década antes, a 9 de junho de 1954, quando, pressionado por Joseph McCarthy, senador Republicano pelo Estado do Wisconsin, lhe retorquiu corajosamente com uma frase que ajudaria ao rápido declínio do macartismo e que, por isso mesmo, se tornaria célebre: “Have you no sense of decency, sir, at long last? Have you left no sense of decency?”
Welch pretendia assim defender um jovem jurista cujo bom nome, como o de tantos outros, McCarthy pretendia pôr em causa. A audiência irrompeu em aplausos, desacreditando assim a atuação do senador. Estando a sessão a ser transmitida em direto do Congresso, milhões de telespetadores americanos puderam testemunhar os métodos inquisitoriais do senador McCarthy, postos ao serviço de uma verdadeira “caça às bruxas”, mais própria da América colonial do que da Democracia a que Abe Lincoln presidiu. Este último tivera razão, como quase sempre, ao afirmar: “What kills a skunk is the publicity it gives itself”.
O princípio do fim do macartismo começara a delinear-se no verão de 1953, perante as alegações levantadas pelo senador contra a pretensa infiltração da instituição militar por comunistas. Se bem que a posição do general Eisenhower, recém-empossado como Presidente em janeiro daquele mesmo ano, nunca tenha estado na mira direta de McCarthy, o senador tinha ido longe demais, pois a instituição militar era a verdadeira alma mater de um Presidente que nela tinha ocupado sucessivos pináculos. A erosão política de McCarthy foi então orquestrada por um coletivo de individualidades cimeiras do “Deep State”, com o aval discreto de Eisenhower, enfadado com um populismo que corria à rédea solta havia demasiado tempo. Para além disso, o Presidente tinha a convicção de que o senador McCarthy almejaria disputar a própria Casa Branca em 1956.
Recorde-se que muita água correu debaixo das pontes até que, após muitas carreiras terem sido injustamente destruídas, estivesse criado um ambiente de saturação propício a que o já nosso bem conhecido Joseph Nye Welch, no seu papel de representante legal principal do Exército, pudesse atalhar o “bullying” político do senador McCarthy e com isso ganhar a aprovação pública.
Regressemos aos nossos dias, a uma congestionada sala de audiências do Capitólio, 20 de março de 2017. James Comey, diretor do FBI, e Mike Rogers, diretor da NSA, responderam durante algumas horas a uma série de perguntas formuladas por membros da Câmara dos Representantes e destinadas a averiguar alegações sobre a interferência russa nas eleições presidenciais americanas de novembro último.
Tomadas no seu conjunto, as perguntas colocadas aos dois diretores sugerem o potencial para uma reedição dos “Red Scares” de antanho. O número de viagens (seis) empreendidas por Donald Trump Jr à Rússia; o facto de um conselheiro da campanha de Trump ter sido casado com uma russa; o desempenho de funções na Merril Lynch em Moscovo por parte de um conselheiro de política externa de Trump – eis tantos motivos da maior inquietação para muitos dos inquiridores. Entretanto, Jared Kushner, genro do Presidente Trump, predispôs-se a testemunhar perante uma comissão do Senado sobre um encontro tido em dezembro com Sergey Kislyak, o embaixador russo em Washington. Especulações sobre o teor desse encontro já levaram Michael Flynn, nele também presente, à demissão do cargo de conselheiro de segurança nacional.
Torna-se cada vez mais evidente que o Partido Democrata ainda não digeriu a sua derrota de novembro passado e que não está minimamente empenhado em analisar as causas profundas da mesma. Assim, o senador Democrata Ben Cardin não tem dúvidas sobre a alegada intromissão no processo eleitoral: “O ataque russo à nossas instituições é um sinal de alarme, um verdadeiro Pearl Harbor político como outros já notaram”. Mentes mais frias aconselham cautela: Michael Schmitt, professor na Universidade de Exeter e que se debruça profissionalmente sobre a aplicação da lei internacional ao ciberespaço, apela ao controlo na escalada verbal, considerando-a perigosa.
O facciosismo e o ódio político estarão de tal forma assanhados que, suspeita-se, muitos elementos no Capitólio não desdenhariam arriscar a zizânia de um processo de “impeachment” com base numa alegada “Russia connection” da Administração Trump. E os Sansões decididos a dar um forte abanão às colunas do Templo da Democracia Americana não se contam unicamente no Partido Democrata, pois convém não esquecer que Trump ganhou a Presidência em boa medida atropelando as elites do seu próprio Partido Republicano.
“What’s past is prologue” – sem dúvida, o “Bardo” tinha razão. Curiosa, no entanto, a aparente troca de papéis entre os atores do drama que se prepara na colina do Capitólio: o Partido Democrata incentiva a inquirição enquanto o Partido Republicano, dividido, oscila no seu apoio a um Presidente que, desta vez, é o verdadeiro visado. Mais de meio século passado, só as paixões humanas são perenes: ambição, vingança, intriga e em devido tempo, quando tal for conveniente, traição.
Por comparação, o mais certo é que a atual procissão ainda vá no adro. Mas, se for recordado que o ponderado e bem-amado Eisenhower gozava de uma autoridade política muito superior àquela de que atualmente dispõe Donald Trump e que, mesmo assim, viu a sua ação de alguma forma condicionada pela atuação do senador McCarthy, não será difícil adivinhar as complicações que a reedição de tal tipo de campanhas poderá implicar face a um Trump volúvel e facilmente tentado a atuar sob um “impulso irresistível”. Para além disso, a Casa Branca e o “Deep State” não estarão desta vez tão bem alinhados como no passado.
No dia 4 de março passado, Trump desencadeou meia hora de tweets a partir das 5h 35m da madrugada (hora local) acusando Obama de ter ordenado escutas à sua residência pouco antes da eleição de novembro. Logo no primeiro tweet, Trump rematou: “This is McCarthyism!” Esqueçamos a diferença abismal entre as tecnologias de comunicação do princípio da década de 1950 e as da atualidade. Ignoremos se há de facto um fundo de verdade na acusação. Concentremo-nos unicamente na postura institucional. Poderíamos nós imaginar uma tal atitude por parte de Eisenhower?
Em coda ao “Anatomy of a Murder”, termina-se com esta nota política curiosa: nas últimas eleições presidenciais, Trump ficou à frente em catorze dos quinze condados da Upper Peninsula do Michigan. No entanto, quatro anos antes, Debbie Stabenow ganhara a sua segunda reeleição como senadora do Estado do Michigan pelo Partido Democrata em todos os quinze condados. Sabedoria dos eleitores? “God bless juries”? Vá Deus saber…
Professor Universitário