Ivars Kalvins. “Se a Sharapova não tomasse meldonium, não tinha a carreira que teve”

Ivars Kalvins. “Se a Sharapova não tomasse meldonium, não tinha a carreira que teve”


Depois dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro tudo será permitido outra vez, diz o médico que inventou o remédio que está a implodir o ténis.


Estava à espera de tanta polémica à volta de um medicamento que criou?

Não, não estava. Não há testes ou provas científicas que comprovem que o meldonium é doping, por isso não estava à espera.

Consegue-nos explicar o que é o meldonium?

Sim. Se as pessoas estão a dizer que o meldonium é doping, estão completamente errados. Eu explico o mecanismo de acção, é muito simples: imagine um motor de um carro, lá dentro colocamos uma mistura de gasolina e ar. E a proporção de gasolina e de ar deve ser equilibrada. Se houver mais do que um desses componentes, nesse caso o motor vai parar.

[somos interrompidos, Ivars tem outro telefonema para uma entrevista, pede-nos um momento. Tem sido muito requisitado nas últimas semanas]

Bom onde é que eu ia? Ah, certo. O motor é como o coração. O sangue traz “misturas” de ácidos gordos, os eletrólitos e a hemoglobina trazem o oxigénio. E temos de ter oxigénio suficiente se não esta “mistura” é demasiado pesada para o coração e ele pára. O meldonium regula estes ácidos gordos no coração. Se nós estamos em situações de pouca oxigenação, não se trata de melhorar a performance, mas sim optimizar o trabalho. Não se pode melhorar a performance! Este é o principal erro que se comete quando se critica o medicamento. Não é possível.

Portanto é para manter o ritmo, e não trazer qualquer tipo de vantagens ao desempenho do atleta

 Não. É um seguro contra lesões.

Vamos à história da criação do meldonium. Foi nos anos 80 que o Ivars a criou, certo?

Sim. Foi aprovada em 1984 e servia para lidar com as consequências do stress. Eu sintetizei uma molécula do corpo, a JBB e percebemos que era a correcta. Mais tarde transformámo-la num medicamento – o meldonium. Foi muito usado no território da antiga União Soivética (URSS) mas não só. Há milhões de pessoas a utilizá-la. E na última década tornou-se muito famosa nesse território. Foi número um na Ucrânia e na Bielorússia, e depois décimo na Rússia em comparação com todos os medicamentos vendidos no mercado.

Mas deu-a inicialmente às tropas da URSS.

Eu não estava a pensar dá-la às tropas, mas eles queriam melhorar as capacidades dos seus militares para combater nas montanhas. Os testes clínicos mostraram que em caso de  situações com pouco oxigénio o meldonium protege o corpo contra lesões cardiomusculares e protege também as células cerebrais. E os militares estavam muito interessados em arranjar este medicamento para os soldados no Afeganistão.

Os soldados não sabiam o que estavam a tomar?

Eles receberam muitos medicamentos e ninguém os informou na União Soviética para o que servia.

Porquê?

Simplesmente não sabiam. Isto era a União Soviética em que os direitos humanos eram um pouco diferentes…

Mas o Ivars sabia?

Sim, sim. Eles visitaram o nosso plano piloto e  o sítio onde o medicamento é produzido  ainda hoje – a Grindex [companhia farmacêutica dos países bálticos]- e eu encontrei-me com eles, falei-lhes da influência positiva no meldonium para salvar vidas.

Passaram-se cerca de 32 anos e o medicamento é muito utilizado em vários países de Leste, como disse. Quanto custa atualmente?

Podia ser ainda mais barata do meu ponto de vista [risos]. Na Letónia, por exemplo, eu sei que uma embalagem de sessenta cápsulas da maior dosagem (500 miligramas) custa à volta de 15 euros.

Num artigo do El País li que o meldonium é quase como uma aspirina para nós na Europa. É verdade?

Em caso de como é útil para o tratamento de problemas cardiovasculares sim, porque a aspirina também serve para isso. Mas o meldonium protege-nos contra lesões no coração. Este medicamento tem um mecanismo de ação diferente. Aqui as dosagens mais pequenas (250 miligramas) podem ser compradas sem prescrição médica, e ninguém viola nenhuma lei.

Li também que se pode comprar na internet.

Conhece o sistema ebay [risos]? Pode comprá-lo aí.

Comprado na internet ou nas farmácias, as pessoas usam o meldonium como a Maria Sharapova usou nestes últimos dez anos: contra diabetes e contra a isquémia [condição característica pela falta de fluxo no sangue]?

A Sharapova usou provavelmente para se  proteger em caso de “overload” (sobrecarregamento) do corpo como as tropas, mas as pessoas aqui usam para tratamento e profilaxia de doenças cardiovasculares.

A Sharapova, quando fez o anúncio público disse que o tomou nos últimos dez anos da sua vida.

Eu acho que ela tomou mais do que dez anos [risos]! Se a Sharapova tomou uma cápsula por dia, e se não houve efeitos secundários durante toda a sua vida, ela devia continuar a fazê-lo. Porque provavelmente sem o meldonium não tinha uma carreira duradoura. Os atletas de topo trabalham arduamente, e estão próximos da fronteira dos limites do corpo, e é muito fácil ultrapassá-los. E se estamos nessa situação, existem lesões cardiomusculares que vão ocorrer: pequenas e grandes infecções ou mesmo morte súbita.

A venda do meldonium foi proibida pela Food and Drug Administrastion (FDA), uma unidade do Departamento de Saúde dos Estados Unidos da América (EUA). Porquê?

Nós nunca nos candidatamos a aprovação nos EUA porque a patente expirou, e por isso não há protecção para a sua produção. Toda a gente pode produzi-la. Não faz sentido fazer essa patente agora. Dizem que não há provas, que não é seguro. A prova está nos 32 anos de uso seguro em milhões de pessoas.

A Federação Russa de Atletismo está suspensa das provas e arrisca-se a não ir aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Há razões políticas por detrás disto?

É exactamente isso. Se não têm provas científicas e se o baniram, e o incluíram na lista proibida de substâncias, devem haver outras razões. Razões políticas ou de negócio? Penso que sim.

Para agravar a tudo isto, o Ivars disse que há muitos atletas que podem morrer se pararem de tomar o medicamento que inventou.

Se eles não poderem tomar, e se durante um treino ou uma competição ultrapassarem a tal fronteira de sobrecarregamento do corpo, aí a morte súbita pode ocorrer. E nós temos visto vários casos de jovens que morrem assim em eventos desportivos. Vai acontecer com mais frequência.

Só que as vendas do meldonium estão a aumentar…

Quem está a consumir mais são os atletas e não as pessoas “normais”. Este é um evento de curta duração. As pessoas que não são desportistas e estão a usar meldonium vão ter medo que seja doping, e vão pensar que é algo que não é saudável e que se trata de um veneno para o corpo. Vão parar de tomar.

Acha que isto é quase uma “Guerra Fria dos desportos”?

Sim. Depois dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro tudo será permitido outra vez. Porque não há razões para descontinuar o uso de meldonium. Não há objecções! A única razão é excluir os atletas russos dos Jogos Olímpicos.

O Ivars foi finalista nos European Inventor Award o ano passado. Este ano a cerimónia decorre em Lisboa. O que é que inventou mais na sua carreira?

Eu sou o inventor com mais sucesso na Letónia. E criei pelo menos mais três drogas originais. Duas são para combater o cancro, a Leacadine e a Belinostat. A primeira foi aprovada durante o período da URSS, mas depois a URSS colapsou e a empresa responsável pela sua produção parou de a produzir. A segunda foi aprovada pela FDA há dois anos, e dá pelo nome de Beleodaq. Espero que venda bem!

Era mais difícil inventar há 30 anos ou agora?

Era difícil nesse período inventar e é difícil inventar na Letónia hoje. Há falta de investimento público para financiamento.

Talvez se fosse inventor noutro país…

Era um homem muito rico!

E agora não é?

Não.

jose.capucho@ionline.pt