Cixi. De concubina a mulher mais poderosa da China


A última imperatriz modernizou a China, aboliu o enfaixamento dos pés e castigos medievais como a morte por mil cortes, reformou o sistema educacional e ia transformar o império numa monarquia constitucional. Cixi nem sequer era a concubina preferida do imperador, mas governou um terço da população mundial entre 1861 e 1908. Vanda Marques mergulhou…


A última imperatriz modernizou a China, aboliu o enfaixamento dos pés e castigos medievais como a morte por mil cortes, reformou o sistema educacional e ia transformar o império numa monarquia constitucional. Cixi nem sequer era a concubina preferida do imperador, mas governou um terço da população mundial entre 1861 e 1908. Vanda Marques mergulhou no livro de Jung Chang, no único que não é proibido na China, ao contrário de “Mao – A História Desconhecida”

Não se podia sentar no trono. Tinha de estar atrás de um biombo, com o filho à frente na cadeira do poder. Não saía da Cidade Proibida, escrevia mal e quando falsificou documentos em nome do filho – o imperador – deu erros gramaticais. Começou como concubina de baixa categoria e, ao contrário da rainha Vitória, de Isabel I ou Catarina, a Grande, não nasceu para governar. Cixi era apenas uma das 19 concubinas do imperador Daoguang e nem era a preferida porque dava opiniões de mais. O próprio avisou a imperatriz Zheng (concubina de maior prestígio) que caso ele morresse e ela tentasse meter-se nos assuntos de Estado devia “exterminá-la”.

Mesmo assim, Cixi chegou ao poder e, segundo a biógrafa Jung Chang, autora do livro “Cisnes Selvagens” e de “Mao – A História Desconhecida” (este último escrito com o marido, Jon Halliday), foi a impulsionadora da China moderna e acabou com muitos dos costumes de um país que em pleno século xix vivia como na época medieval. “Fiquei espantada com a liberdade que o jovem Mao teve ao crescer, durante o reinado de Cixi. Facilmente conseguia uma bolsa para estudar, podia sair do país, dormir num hotel com a namorada, dizer o que quisesse num jornal – quase não havia censura no tempo da Cixi. Todas estas liberdades acabaram quando eu cresci e o Mao estava no poder.” É desta forma que Jung Chang explica o que a motivou a escrever “A Imperatriz Viúva – Cixi, a Concubina Que Mudou a China”, uma investigação meticulosa que pretende mostrar “o lado verdadeiro” da imperatriz considerada por muitos conservadora e cruel e quase apagada da memória. “Ouvi falar muito da rainha Vitória. Mas não penso que a vida dela tenha sido tão interessante e cheia de eventos como a minha”, terá dito Cixi.

A mulher mais importante da China, que começou a industrialização do país e foi uma das impulsionadoras da abertura aos estrangeiros – depois de apoiar a rebelião dos Boxer, um confronto sangrento contra os estrangeiros e cristãos, reconsiderou a posição anterior mais tradicionalista. “Apenas adoptando o que é superior nos países estrangeiros podermos rectificar o que precisamos na China”, defendeu.

Cixi nasceu a 29 de Novembro de 1835. Filha de funcionários do Estado teve uma infância sem grandes preocupações. Vivia no seio de uma família culta, sabia ler, escrever, desenhar, jogar xadrez e fazer vestidos. Quando o avô foi preso, porque o imperador decidiu penalizar todos os fiscais e inspectores da reserva, a família teve de reunir uma elevada quantia de dinheiro. Sendo Cixi a irmã mais velha, ajudou o pai a organizar o que deveriam vender e aceitou trabalhos de costura para arranjar dinheiro. O contributo foi tão importante que o pai lhe disse: “Esta milha filha mais parece um filho!” A entrada no mundo dos homens começa nesse momento. O pai tratava-a como um homem, numa época em que a segregação dos sexos era a norma. Temas de que nunca se falaria com uma mulher entravam nas conversas entre pai e filha: assuntos de Estado, questões oficiais. E há outro detalhe que a biografa aponta como a origem da sua forma de governar justa: “Tendo sentido a amargura do castigo arbitrário [o avô que foi preso], iria esforçar–se por ser justa com os seus funcionários.”

concubina política O pai de Cixi torna-se governador e nessa altura morre o imperador Daoguang e sobe ao poder o filho Xianfeng. Pouco depois da coroação começa a selecção de concubinas. Tinham de ser adolescentes, manchus ou mongóis, e as famílias tinham de ter estatuto. Cixi era uma delas e foi para Pequim para desfilar em frente ao imperador. Queriam-se candidatas modestas, gentis com um aspecto “agradável”. Cixi não era particularmente vistosa, mas distinguia-se pelo força do olhar. O imperador gostou dela e a jovem de 16 anos passou para a lista de seleccionadas do harém.

O imperador era conhecido por adorar sexo, um Don Juan com 19 consortes, e Cixi começou por ser apenas mais uma e até mal colocada no ranking de classes no harém e com poucas perspectivas. O imperador chinês enfrentava muitos problemas no país. Havia fome, rebeliões, motins, falta de dinheiro e as ameaças de invasões estrangeiras. A concubina tentou dar conselhos ao imperador, uma coisa impensável e de que ele não gostou nem um bocadinho. Surgiu aí a ameaça de morte, ou melhor, o conselho que deu à imperatriz Zheng de a calar caso ele morresse antes dela. Cixi teve de encontrar pontos em comum com ele e a paixão pela arte e pela ópera foram as melhores soluções. Xianfeng compunha árias, escrevia letras, dirigia espectáculos e entrava neles. Mas o que mudou mesmo a relação, além de Cixi se conter nas opiniões políticas, foi o nascimento do filho, Tongzhi, em 1856. A jovem concubina passou imediatamente para número dois, pois até à data o imperador só tinha tido uma filha. Mas os eventos iam precipitar-se.

Em 1860 foram forçados a deixar Pequim quando as forças ocidentais invadiram o país durante a Segunda Guerra do Ópio. Um ano depois o imperador morreu e Cixi percebeu que o caminho da China era negociar com o estrangeiro. O seu filho era o único herdeiro, mas ela não era oficialmente a mãe do novo imperador, essa função cabia à concubina mais importante, Zheng. Cixi não ia descansar até mudar essa posição. E lá encontraram nos registos históricos que no século xvii tinha havido duas imperatrizes viúvas. Solução perfeita. Torna-se aliada de Zheng e juntas fizeram o golpe de Estado contra os oito regentes que influenciavam o filho. Uma história fascinante que começa desta forma. Durante quatro décadas – com avanços e recuos e muitos movimentos de bastidores – Cixi modernizou o país, investiu na industrialização (apesar de nunca ter andado de carro, já que o seu motorista tinha de estar sempre ajoelhado junto de si), apostou na educação, lutou para dar mais direitos às mulheres (aboliu o enfaixamento dos pés) e reduziu a violência do Estado ao acabar com muitos castigos violentos como a morte por mil golpes.

Claro que nada disto foi um caminho simples e sem vítimas. A reputação de Cixi é de uma mulher conservadora e déspota que enviou a dois dos regentes do filho lenços brancos – ordem para se suicidarem. Chegou mesmo a matar o filho adoptivo – que subiu ao poder depois de o seu filho biológico, o imperador Tongzhi, ter morrido jovem. O imperador Guangxu era seu sobrinho, estava muito doente, e como Cixi temia o que ele iria fazer à China quando morresse, deu-lhe uma ajudinha. Envenenou-o com arsénico poucos dias antes de morrer. Quanto a isto, Jung Chang explicou ao “The Guardian” que o número de mortos não foi elevado. “Em quatro décadas de poder absoluto, os seus assassinatos políticos, quer sejam justos quer injustos não passaram de umas dúzias, muitos em resposta a complôs para a matarem.” Mao nisto bate todos os recordes trágicos: 70 milhões de mortos causados pelo seu regime.

A biografia que chegou agora a Portugal causou discussão, com algumas acusações de ter um ponto de vista muito positivo. Ainda assim, Jung defende que Cixi pretendia transformar a China numa democracia constitucional. Morreu antes de isso acontecer e em 1928 as tropas republicanas invadiram o seu túmulo e saquearam as jóias. Até o cadáver ficou exposto. Um final nada digno de uma figura histórica que vale a pena descobrir.