Estrangeiros. “É preciso encontrar o equilíbrio entre atratividade internacional e coesão social interna”


Nos últimos anos o número de estrangeiros que compram casa em Portugal aumentou, e muitos consideram que são eles os principais culpados para o aumento dos preços do mercado. Será verdade?


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Não há como refutar: Portugal é um país atrativo para os estrangeiros. Quer pelo ambiente acolhedor, pelo clima ameno, pela segurança, pelo estilo de vida mais relaxado, a gastronomia, as tradições ou pelos preços “baixos”. São várias as características e pontos positivos que os levam a escolher este cantinho da Península Ibérica como casa. E se antes era preciso ir até à capital ou ao Algarve, por exemplo, para ter uma pequena ideia da quantidade de estrangeiros que escolhem Portugal para viver – há uns anos falávamos maioritariamente de reformados que se apaixonaram por esta zona do mundo -, agora, um pouco por todo o país, vemos pessoas de várias nacionalidades e gerações a comprar casa, abrir negócios e construir família.

Atualmente, os estrangeiros têm menos incentivos para comprar casas em Portugal, dado o fim dos vistos gold para investimento imobiliário e do término do antigo regime de Residentes Não Habituais (RNH). Apesar dessas alterações fiscais, os preços das casas continuam a aumentar e muitos acreditam que os estrangeiros continuam a ser os culpados por esse aumento. Além disso, são cada vez mais os famosos que se interessam pelo país, transformando algumas zonas como a Comporta em locais de luxo, fazendo disparar os preços e acabando por obrigar quem lá cresceu a ir embora pela falta de capacidade de acompanhar todos os aumentos.

Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o conjunto dos países de naturalidade dos compradores com maior número de aquisições é liderado pelo Brasil, com 7 694 alojamentos transacionados em 2024, o que constituiu um aumento de 37,8% face a 2019 (5 581). Este país representou 20,0% das aquisições por famílias sem naturalidade portuguesa.

No período entre 2019 e 2024, destaca-se também o crescimento observado dos EUA, mais que triplicando o número de transações (537 em 2019 e 1 707 em 2024), traduzindo-se num acréscimo de 2,7 pontos percentuais (p.p.) em termos de peso relativo. Contrariamente, posicionou-se a França (4 016 transações em 2024), com a redução mais expressiva no peso relativo (-6,0 p.p.).

Os valores médios das transações envolvendo compradores com naturalidades diferentes da portuguesa foram geralmente superiores aos das aquisições por portugueses (186 501 euros, em 2024), com exceção de Cabo Verde (173 714 euros) e São Tomé e Príncipe (162 105 euros). Entre as naturalidades com maior número de transações, destacam-se os valores médios do Reino Unido e dos EUA (431 172 euros e 429 823 euros, respetivamente) com valores mais de 130% acima do valor médio dos adquirentes com naturalidade portuguesa, no caso dos EUA com um incremento de 25,7 p.p. face a 2019. Em sentido contrário, destaca-se a redução de 53,3 p.p. verificada na China, cujo valor médio de 2024 (366 919 euros) se situou 96,7% acima do valor médio pago pelos adquirentes naturais de Portugal.

Fim dos vistos gold

De acordo com Neuza Silva, especialista em intermediação de crédito e consultoria imobiliária, o mercado imobiliário português tem vindo a registar, na última década, um aumento significativo do interesse por parte de investidores e compradores estrangeiros. “Este fenómeno, longe de ser recente, teve o seu ponto de viragem por volta de 2012, quando Portugal implementou instrumentos de captação de capital externo, como o programa dos Vistos Gold e o Regime Fiscal para Residentes Não Habituais (RNH)”, explica.

Recorde-se que o Visto Gold – conhecido oficialmente por Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI) – é uma autorização para entrada e residência em Portugal atribuída a cidadãos estrangeiros, não naturais da União Europeia ou residentes fora do Espaço Schengen, a troco de um investimento financeiro avultado.

A quem o adquiriu foi garantida a possibilidade de entrar em Portugal com dispensa de visto de residência; residir e trabalhar em Portugal, desde que permanecendo em território nacional um período mínimo não inferior a 7 dias no primeiro ano e não inferior a 14 dias nos anos subsequentes; circular pelo espaço Schengen, sem necessidade de visto; beneficiar de reagrupamento familiar; solicitar a concessão de Autorização de Residência Permanente; possibilidade de adquirir a nacionalidade portuguesa, por naturalização. Em Portugal, a larga maioria dos Vistos Gold foi atribuída através de investimento imobiliário.

A polémica em torno destes vistos começou em 2022 – com a suspensão da plataforma ARI (Autorização de Residência para Atividade de Investimento) e com o Governo a avaliar o fim do programa. Com várias pessoas a apontar o dedo aos Visto Gold como sendo “culpados” pelo aumento dos preços das casas e pela crise habitacional em Portugal, o Governo socialista decidiu pôr um ponto final ao programa para investimento imobiliário a partir de 7 de outubro, o dia em que o Mais Habitação entrou em vigor. A par de tudo isto, também o regime de RNH foi substituído por um novo mais restrito no arranque de 2024.

“Portugal apresenta um conjunto de características que o tornam altamente competitivo no panorama europeu, estabilidade política e segurança pública, sendo um dos países mais seguros do mundo, clima ameno, qualidade ambiental e uma excelente relação custo-benefício, infraestruturas modernas, bons serviços de saúde e uma oferta cultural crescente. Não esquecendo a excelente localização geográfica estratégica, com ligações rápidas ao resto da Europa”, continua a especialista, acrescentando que estes fatores são particularmente valorizados por segmentos como reformados, nómadas digitais, e investidores imobiliários “que procuram mercados seguros para diversificação de ativos”.

Os nómadas digitais

No que toca ao perfil dos compradores, segundo Neuza Silva, conseguimos identificar padrões, mas o perfil do comprador estrangeiro é diversificado: “Temos reformados oriundos de países nórdicos; França e Reino Unido que privilegiam zonas costeiras tranquilas, como o Algarve ou o Alentejo Litoral; temos investidores que procuram essencialmente ativos para rentabilização, com foco no mercado de arrendamento tradicional e turístico, e temos os nómadas digitais e profissionais remotos que valorizam imóveis em zonas urbanas dinâmicas perto de aeroportos e com transportes públicos de acesso internacional (Lisboa, Porto) ou localidades com boa qualidade de vida e conectividade (Ericeira, Madeira, Açores)”, detalha.

Mas para a especialista, o investimento estrangeiro é apenas um dos vetores do aumento da pressão sobre os preços. Há, na realidade, uma conjugação de fatores estruturais que explicam a subida acentuada do valor dos imóveis: “Défice crónico de novas construções agravado por entraves administrativos e licenciamento moroso (para ter uma ideia, a aprovação para início de construção pode levar cerca de ano/ano e meio na zona de Lisboa); materiais de construção com valores cada vez mais elevados e falta de profissionais no setor; transformação massiva de imóveis em alojamento local, especialmente nas zonas históricas; especulação imobiliária e práticas de revenda acelerada; incentivos fiscais que fomentaram uma procura que não teve resposta proporcional na oferta”, enumera.

A isto “junta-se um desequilíbrio entre o rendimento médio dos portugueses e os valores praticados no mercado, criando uma assimetria grave no acesso à habitação”.

O número crescente de nómadas digitais, com poder de compra superior à média nacional, embora tragam dinamismo económico e cultural, “também estão a pressionar os preços em zonas onde a oferta habitacional já era limitada”.

Com o objetivo de apoiar o acesso à habitação por parte da população jovem, o Governo português implementou em 2024 um conjunto de medidas, entre as quais se destaca a isenção do pagamento de IMT e de Imposto do Selo na aquisição da primeira habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos (ler pág. 6 e 7). “A medida foi saudada como um passo relevante num contexto de preços elevados e grande dificuldade de acesso à habitação, mas rapidamente começaram a surgir distorções no seu enquadramento e aplicação prática”, defende Neuza Silva. “A medida não exige nacionalidade portuguesa, nem um número mínimo de anos de residência no país, apenas implica que sejam residentes fiscais em Portugal no momento da aquisição”, esclarece, garantindo que este “pequeno detalhe” abriu a porta para que muitos nómadas digitais e cidadãos estrangeiros recém-chegados, com rendimentos consideravelmente superiores aos da média portuguesa, “pudessem aceder a este benefício fiscal, em igualdade formal com os jovens portugueses que vivem e trabalham em Portugal desde sempre”.

“Como temos repetido algumas vezes no nosso país, infelizmente, trata-se de mais um benefício social a ser capturado por quem menos dele precisa. O grande problema aqui não é jurídico — a lei é clara e está a ser aplicada como foi aprovada. O problema é estrutural e ético: uma política fiscal que pretende corrigir desigualdades sociais está a ser aplicada de forma cega ao contexto económico e social dos beneficiários”, lamenta.

Num mercado onde o preço médio de uma habitação é, em muitos casos, incompatível com os rendimentos dos jovens portugueses, “o acesso facilitado de cidadãos com maior poder de compra (nomeadamente nómadas digitais com salários em moeda estrangeira ou rendimentos tecnológicos elevados) acaba por pressionar os preços e eliminar a competitividade do comprador nacional”, garante Neza Silva.

“Como especialista em Consultoria Imobiliária, considero que deveriam ser revistos os critérios de elegibilidade. Poderiam ser introduzidos fatores como tempo mínimo de residência fiscal, rendimento global e histórico de contribuições”, sugere.

Apesar de reconhecer que a presença de nómadas digitais em Portugal traz vantagens económicas e culturais inegáveis, a especialista defende, por isso, que a política habitacional não pode ignorar as desigualdades de base. “Quando os benefícios fiscais pensados para apoiar os jovens portugueses são utilizados por estrangeiros com maior poder de compra, o Estado está, sem intenção, a agravar o problema que queria resolver”, aponta.

“O investimento estrangeiro tem, sem dúvida, trazido benefícios ao setor que todos reconhecemos, tais como revitalização urbana, aumento do parque habitacional de qualidade e dinamização económica. Porém, sem mecanismos eficazes de regulação e planeamento urbano sustentável, este fenómeno pode contribuir para a exclusão de quem mais precisa de acesso à habitação: os próprios portugueses. O desafio está em encontrar o equilíbrio entre atratividade internacional e coesão social interna”, remata Neuza Silva.