Há quem diga que o primeiro jogo de futebol entre Brasil e Argentina teve lugar no dia 9 de julho de 1908. A teoria divide-se. AFIFA, que tem a mania que manda em tudo mesmo antes de ter sido fundada, numa prepotência desgraçada de fazer com que um quadrado caiba no espaço de um triângulo, não reconhece essa partida. Por seu lado, os brasileiros descartam a compita por só terem sido utilizados jogadores do Rio de Janeiro. E postergam a estreia da sua seleção para o dia 21 de julho de 1914, numa vitória contra oExeter City, de Inglaterra (2-0). Curioso já que a FIFA também não aceita contabilizar disputas entre seleções e clubes. Percebe-se a conveniência brasileira. Adiantando o calendário poupam-se a duas derrotas com os argentinos. Mas vou falar delas, até porque estão muito bem documentadas no livro El Fútbol en el Río de la Plata, de Ernesto Escobar Bavio, publicado em 1923.
Vamos então até 1908. Os argentinos andavam em digressão pelo Brasil e realizaram nem mais nem menos do que sete jogos de exibição da sua franca superioridade: seis vitórias e um empate. A essa superioridade não era alheia a presença de vários britânicos de segunda geração no conjunto, uma prática à época. Os irmãos Brown, por exemplo, Alfredo, Eliseu e Ernesto; Guillermo Campbell; Carlos Dickinson. Mas, no Rio de Janeiro, frente ao Exeter, no Campo das Laranjeiras, então na Rua da Guanabara, e pertença doFluminense, o destaque foi um moço deSanIsidro. Pelas duas e meia da tarde chovia.O que não impediu que se juntassem em redor do retângulo cerca de 14 mil curiosos. O triunfo dos albicelestes (3-2) foi selado com um golo de Lucio Burgos.
Prossigamos na forçada inexistência. 1912, 8 de setembro. Na véspera comemorara-se o 90.º aniversário do Grito do Ipiranga e os argentinos juntaram-se à grande festa noRio. O assunto foi levado tão a sério que o dirigente da comitiva era Julio ArgentinoRoca, antigo presidente da República Argentina. Ao intervalo já oBrasil estava a levar três e a ser massacrado. Então, Roca foi falar com os jogadores para lhes pedir um pouco de consideração pelos amigos brasileiros. Assim, chegando aos 5-0, a Argentina deixou que o adversário marcasse três golos. Ficou 3-6. Um gesto de piedade que deve convir ser abafado pela manigâncias do que vale ou não vale. E só ao terceiro confronto é que a CBFe a FIFA declararam abertas as hostilidades: 20 de setembro de 1914, no Estádio doGimnasia y Esgrima, Buenos Aires, vitória dos da casa por 3-0. Para não variar. Era o samba vergado ao tango dos subúrbios, como lhe chamava Gardel.
Goleadas argentinas
Nas primeiras décadas de jogos entre ambos, a Argentina levou claramente a melhor. E os resultados foram sendo equilibrados. Até que vieram as Copa Roca de 1939 e 1940. Está-se mesmo a ver quem deu o nome à competição, não está? Esse mesmo. Alejo Julio Argentino Roca Paz, que decidiu, depois da tal partida de 1914, instituir um torneio entre as duas seleções. De 15 de janeiro de 1939 a 17 de março de 1940, houve a mastodôntica contabilidade de sete confrontos entre Argentina e Brasil. Com más memórias para os brasileiros.
Tudo começou de forma abracadabrante no Estádio deSão Januário, noRio de Janeiro, perante mais de 70 mil espetadores. O Brasil foi esmagado por 1-5, depois de ter estado a perder outra vez por 0-5. Leônidas da Silva, a Pérola Negra do pontapé-de-bicicleta reduziu na última meia hora depois de Herminio Masantonio e José Manuel Moreno (dois golos cada) terem infernizado a vida ao guarda-redes Batatais. O jornalGlobo não perdeu a parangona: «O maior revés do football brasileiro». O pior estaria para vir, mas já não nesse ano pois no segundo jogo, sete dias mais tarde, o Exeter venceu por 3-2 com golos de Adílson, Leônidas (claro!) e Perácio. Havia mais duas batalhas para decidir o vencedor, marcadas para São Paulo, a 18 e 25 de fevereiros seguintes. Uma Argentina diminuída, sem algumas das suas estrelas, aguenta o 2-2 no Campo do PalestraItália(atual Palmeiras), na primeira dose. Depois, outra vez no mesmo terreno, fica com a taça graças a uma vitória por claros 3-0.
O Brasil em pedaços
Menos de um mês depois, a 5 de março, tinha início a edição da Copa Roca de 1940. Desta vez resolver-se-ia em apenas dois jogos. Ou assim pensava toda a gente. Era a vez de Buenos Aires e do Estádio El Gasómetro, do San Lorenzo, serem anfitriões. O ambiente fervilhante e as exibições deslumbrantes de Emilio Baldonedo, Carlos Peucelle (três golos) e Masantonio desfizeram o Brasil em pedaços: 6-1. Cerca de 50 mil pessoas festejaram a maior goleada de sempre assinada pela Argentina aos brasileiros. E voltaram a juntar-se no mesmo estádio, no dia 10.
Talvez a euforia tenha adormecido os argentinos.Ou talvez Hércules deMiranda, o avançado doFluminense, tenha sido demasiado hercúleo. Foi ele, com a ajuda de Leônidas, esse negro divino com nome de rei de Esparta, levou a equipa para uma vitória inesperada por 3-2. Tão inesperada que a organização teve de marcar um terceiro jogo para definir o vencedor do troféu. Desta vez foi o Estádio Almirante Cordero, em Avellaneda, casa do Independiente, a romper pelas costuras. Hércules, lesionado, como se isso fosse possível se nem o Leão de Lepanto lhe fez um risco, deixou o Brasil entregue a Leônidas e Jair RosaPinto. Não chegou. Peucelle, Masantonio e Baldonedo voltaram a ser enormes. E o resultado largo nas mangas: 5-1. No espaço de dois meses os argentinos tinham sujeitado os seus rivais a três gordas goleadas. Nunca a diferença voltou a ser de tal ordem. Como se viu na quarta-feira, no Estádio Monumental. 4-1! Bateu certo.